“Conseguimos, irmãs”: Aborto já é legal na Argentina

A votação, histórica, pode ser um momento de viragem na América Latina. Numa das zonas do mundo com leis mais restritivas, a Argentina é o primeiro país com influência regional a descriminalizar o aborto.

Em votação histórica, Argentina legaliza o aborto Reuters, Carolina Pescada

E à nona foi de vez. Às 4h07 da madrugada desta quarta-feira, o aborto foi descriminalizado até às 14 semanas na Argentina. A chamada “maré verde” nascida em 2018, quando o Senado chumbou a oitava tentativa para aprovar no Congresso a legalização do aborto, festejou por fim. A Argentina torna-se no primeiro grande país da América Latina a aprovar a interrupção voluntária da gravidez, juntando-se à curta lista de pequenos países que incluía Cuba, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa, para além de Oaxaca e Cidade do México.

“Conseguimos, irmãs. Fizemos história. Fizemo-lo juntas. Não há palavras para este momento, atravessa o corpo e a alma”, escreveu no Twitter Mónica Macha, deputada da coligação de centro-esquerda do Presidente, Alberto Fernández, impulsionador da proposta aprovada.

O resultado acabou por ser bem menos renhido do que o antecipado, com 38 senadores a votarem a favor, 29 contra e uma abstenção. Nas regiões do Norte, mais condicionadas pelo peso da Igreja Católica e dos grupos evangélicos, a maioria opôs-se. Entre os homens, a maioria votou contra, entre as mulheres, a favor, independentemente dos partidos.

“Quando eu nasci nós, mulheres, não votávamos, não herdávamos e não podíamos ir à universidade. Quando eu nasci, nós não éramos nada”, afirmou a senadora Silvia Sapag durante o debate, quando era já claro que a lei passaria. “Sinto emoção pela luta de todas as mulheres que estão lá fora. Por todas elas, que seja lei.”

Há 99 anos que era legal abortar na Argentina em caso de violação ou de risco ou saúde para a vida da mãe. Mas nem a lei se aplicava sempre, com casos de mulheres e meninas violadas a quem os médicos recusavam interromper a gravidez, por exemplo, nem a criminalização foi factor de dissuasão: há 270 a 530 mil abortos e perto de 40 mil hospitalizações anuais por problemas relacionados com abortos. Em 2018, 38 mulheres morreram em complicações ligadas a abortos não seguros.

Mariela Belski, directora-executiva da Amnistia Internacional argentina, festejou, mas já prepara o resto da luta. “Agora talvez venha o mais complexo. Não vai demorar mais de uma semana a haver um pedido na justiça para considerar esta lei inconstitucional. Faltam muitos obstáculos, vai haver regiões onde será muito difícil implementar a lei”, diz ao PÚBLICO.

A activista assegura que o movimento que impulsionou a mudança, “formado por uma diversidade enorme de colectivos”, tem “plena consciência” das dificuldades futuras. “Não temos todas as mesmas ferramentas. Umas vão ocupar-se da judicialização, outras vão trabalhar para capacitar profissionais de saúde nas suas zonas, algumas estarão prontas para voltar à rua quando for preciso.”

Lembrando que o “lenço verde” das argentinas que defenderam a legalização do aborto já se tornou no símbolo de todas as mulheres da América Latina que lutam pelo mesmo direito, Belski acredita que esta votação vai forçar a entrada da discussão mesmo em países onde o tema é mais delicado. Para já, festeja que “um ano tão complicado como 2020, na Argentina e na região, termine com esta ampliação de direitos”.

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