Uma “cidade-parque” no lugar da refinaria de Matosinhos? É o Cabo do Mundo 21

Um grupo de alunos do último ano de Arquitectura da Universidade de Coimbra está a simular um futuro para o espaço que a refinaria de Matosinhos ocupa. Será o tema das suas teses de mestrado. O Cabo do Mundo 21 é descarbonizado e aposta no sentido de comunidade. Uma visão utópica? “Tudo é possível, tudo é viável.”

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Nelson Garrido

Em Outubro último, não se adivinhava ainda o futuro da Refinaria do Cabo do Mundo, em Leça da Palmeira, Matosinhos. Ou, pelo menos, não havia palavra certa e definitiva sobre o assunto — se bem que, também nesse mês, foi anunciada a suspensão temporária da produção de combustíveis na refinaria matosinhense. Ao mesmo tempo, noutras geografias, Nuno Grande propunha um tema aos alunos do último ano do Departamento de Arquitectura (DARQ) da Universidade de Coimbra: pensar uma nova realidade para os 400 hectares ocupados pela refinaria e tornar o espaço numa “cidade-parque pós-carbono e pós-covid”. Chamou-lhe Cabo do Mundo 21. Deste projecto sairão os temas das teses de mestrado dos alunos.

Agora, sabe-se que a suspensão das operações de refinação em Matosinhos não é temporária, mas sim definitiva. A Galp confirmou-o a 21 de Dezembro: mal entre 2021, a refinaria continuará apenas “a operação das principais instalações de importação, armazenamento e expedição de produtos existentes”. O “fim da refinaria” como a conhecemos reflectir-se-á “imediatamente na qualidade do ar”, afirma Humberto Silva, presidente da ADERE (Associação Década Reversível) de Matosinhos. Contudo, é preciso ter em conta que “a região e o público a que esta refinaria serve vão requerer energia de alguma forma” — se for necessário importá-la, “também há um custo ambiental”. Para o presidente da ADERE, esta é uma “conversa complexa” e as notícias recentes deixam a associação “apreensiva e expectante em relação ao futuro”. “Só depois poderemos tirar conclusões a nível ambiental”, conclui.

Por outro lado, para os 18 alunos que decidiram aceitar o desafio de Nuno Grande — e para o próprio —, aquele “exercício meramente académico, que é uma simulação”, passa a ter maior actualidade. Porque, mesmo tendo em conta a natureza académica do projecto, não se descarta “colocar a academia ao serviço do poder municipal e nacional”. Por isso, seria “interessante levar a discussão para o município de Matosinhos, que não quer que se prolongue a perspectiva poluente” da refinaria, aponta Nuno Grande. A proposta para a reconversão da Refinaria do Cabo do Mundo prevê isso mesmo, através de alternativas ambientalmente sustentáveis para a indústria que ali se instalou há 55 anos, imposta ao município pelo governo salazarista.

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Na maquete deste grupo de alunos do DARQ, identificam-se zonas dedicadas à produção de energia: há zonas dedicadas às centrais de biomassa, os painéis solares estendem-se no terreno, erguem-se as turbinas eólicas. Mas não só, já que falamos de uma cidade-parque (e em 400 hectares cabe muito): há hortas comunitárias para os habitantes do Cabo do Mundo 21, que poderão viver em habitações partilhadas. De casa, também poderão sair para os hubs criativos ou para os recintos dedicados à prática desportiva. Não ficam esquecidos os afazeres do quotidiano — há, claro, equipamentos sociais, zonas de comércio e até um centro turístico. E os transportes suaves não ficam esquecidos.

Uma cidade nova, mas com elementos do passado

Não é a primeira vez que Nuno Grande propõe aos alunos um exercício deste tipo; fá-lo, aliás, “há 30 anos”. Desta vez, pesou na escolha do tema o gosto pela área em que a refinaria se situa. “Sou utente das praias de Leça, gosto de visitar a Casa de Chá, e apercebi-me que aquele lugar estava a entrar em decadência. Não havia a mesma actividade. Então, comecei a pensar: ‘Se um dia isto desaparecer, estará alguém a pensar neste território tão vasto?’”, explica. “Longe de mim pensar que isto [a suspensão definitiva] iria acontecer.”

O “lado futurista” da refinaria também o motiva a “pensar a cidade para o futuro”. “Tem um ambiente de ficção científica. Aquele lugar fascina-me, sobretudo, à noite: as luzes, as chaminés, os pipelines”, acrescenta. E, por isso, o projecto procura manter “a aura industrial da refinaria”, reciclando elementos “marcantes do lugar” como esse. E aproveitando “as estruturas metálicas dos depósitos que lá estão”, que poderão, por exemplo, ser convertidos “em células de apartamentos”. Tudo isto é feito a 36 mãos: ou seja, o projecto tem de ser “articulado de forma coerente, evitando que cada um se feche no seu pequeno mundo”.

Juntos, definiram a primeira estratégia: substituir “o impacto da larga via marginal” por um extenso manto verde — uma mata atlântica. “A frente da refinaria foi um dos problemas que identificamos. Leça tem a frente industrial para a cidade, mar e praia. O que nós propomos é aproveitar a estrutura existente para construir a mata atlântica”, explica um dos alunos, Nuno Miguel Gonçalves, de 26 anos. Os acessos “mais aprazíveis” “ao mar, às dunas, aos restaurantes de praia, à Casa de Chá e ao Farol da Boa-Nova”, como se lê num documento enviado por Nuno Grande ao P3, articulam-se com o tema trabalhado pelo aluno: a mata atlântica “influencia o aproveitamento de resíduos orgânicos” para as centrais de biomassa, que poderão produzir energia mais limpa.

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As ideias dos alunos articulam-se no Cabo do Mundo 21, em que as indústrias limpas poderão partilhar o espaço com habitações. Nuno Grande

“A minha ideia é introduzir essa central para poder sustentar energeticamente a própria cidade. Estaria à porta da cidade, exposta, para facilitar a logística de transporte, tanto para dentro como para fora. E, assim, evitar-se-ia o trânsito da cidade”, especifica. Deste modo, “tira-se uma indústria poluente, mas coloca-se outra mais sustentável” num “ponto estratégico do país” que continua a estimular “o emprego”. Para além disso, aproveitam-se os resíduos orgânicos da biomassa e “ajuda-se na limpeza das matas”, já que se prevêem mais incêndios em solo nacional “com o aumento das temperaturas”. 

Esta poderá ser uma realidade em meio século — ou menos, já que os planos do Governo passam por atingir a neutralidade carbónica em 2050. Com “poucos casos de estudo em Portugal”, Nuno baseia-se nos exemplos da Dinamarca, cuja capital quer atingir a meta da neutralidade em emissões de dióxido de carbono até 2025. Para a cidade do futuro dos 18 futuros arquitectos, o estudante bracarense aposta em “mostrar como uma indústria pode relacionar-se com a habitação”. Porque, mais uma vez, “nenhum projecto individual pode pôr em causa a estratégia global da turma”, frisa o professor.

Está tudo ligado

É por isso que “o grupo de alunos que está a trabalhar a extensão da linha do metro” tem de pensar em não só servir a população que ali residirá, mas também em atrair turistas vindos do aeroporto para aquela zona. Pela mesma razão, há alunos a trabalhar em novos edifícios de serviços — afinal, existe um centro de turismo nesta cidade imaginada. O espírito colaborativo deste projecto a 36 mãos espelha a vertente comunitária patente: “Há uma ideia de que temos de encontrar formas de relação comunitária mais intensa entre vizinhos e bairros. A ideia do coliving pode ser interessante: cada um tem o seu espaço privado, mas também há espaços comuns generosos.” A perspectivar “a arquitectura e o desenho urbano pós-pandemia”, o grupo de alunos trabalha para construir uma cidade-parque “amiga do ambiente e intergeracional”.

Primeiro porque “é necessária sustentabilidade construtiva e material” com a reciclagem “do que já existe”, como antes foi apontado, e incluindo mais materiais para além do betão — barato, mas poluente —, como o ferro “e um pouco da madeira, para evitar a destruição do manto arbóreo”. Depois, e já na esfera do desenho urbano e da intergeracionalidade, “é preciso pensar as cidades em maior densidade, aproximando as pessoas”. Numa alternativa “à tipologia dos lares de idosos”, na cidade projectada por estes alunos, estes condomínios poderiam ser uma resposta para não isolar os mais velhos, estabelecendo uma relação entre várias faixas etárias, “que se entreajudam”.

Mesmo na eventualidade de outra pandemia virar o mundo do avesso: “É possível haver cidades preparadas para isso, com espaços de confinamento e desconfinamento”, esclarece o professor. Isso já acontece agora — fechamo-nos em casa e convivemos em espaços comuns próximos à nossa residência. Só que no futuro que o Cabo do Mundo 21 quer albergar, esse convívio estimula “a redução da pegada ecológica”. E aí entram, claro, as hortas comunitárias, “que contrariam a lógica das grandes superfícies”: “Esta possibilidade de ter uma loja e consumo de bairro permite uma vida mais saudável, qualificada e de maior relação humana. Para além de assentar numa lógica de economia circular.”

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O projecto prevê a reutilização de elementos "marcantes" daquele lugar, como os depósitos circulares ou os "pipelines". Nuno Grande

Todas estas ideias não precisam de ser uma utopia: “Tudo é possível, tudo é viável. Desde que com pés e cabeça e sustentável. Os projectos têm de ser muito bem pensados e precisa de haver investimento”, opina Humberto Silva. Para Nuno Grande, este deve ser um processo gradual, apontando como possibilidade “uma parceria que tornasse aquela área num laboratório urbano para criar uma cidade-parque e começar a incluir indústrias de energias limpas”. A questão da descontaminação do terreno, “bastante surreal dado o tamanho e [o facto de ser] cara”, indica Nuno Miguel Gonçalves, parece ser um dos maiores obstáculos. “É o grande handicap, mas já foi feito e é possível”, acredita o professor.

E mesmo se “erros forem cometidos” ao longo do projecto — cuja conclusão acontecerá em Setembro de 2021, na altura da apresentação das teses de mestrado —, o estudante gostaria de os discutir e debater. “As cidades devem ouvir e ver projectos como este para se pensar o futuro”, afirma. “A Casa da Arquitectura já mostrou interesse no debate. Acho que é bom ouvir toda a gente sobre o assunto e chamar todos os intervenientes”, diz o professor. Mas levando o tema a sério e apelando “à consciencialização dos decisores, para tornar algo assim em realidade, procurar alternativas e não deixar as políticas ambientais no papel”, frisa o presidente da ADERE. Afinal, como diz Nuno Grande, naqueles 400 hectares “estão mais de 50 anos de memórias de Matosinhos” e de quem lá habita.

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