Príncipes há muitos, Beethoven só um

Não é certa a data do seu nascimento mas a de baptismo foi a 17 de Dezembro, há 250 anos. O génio da música nascido em Bona, mas que passou a maior parte da sua vida em Viena, foi lembrado ao longo do ano por todo o mundo com exposições e concertos para ouvir e re-ouvir a música de quem pensou que a arte era uma das produções mais decisivas do ser humano.

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manuscrito do compositor vendido pela Sotheby's Reuters/REUTERS/HO
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É sabido que cabem 74 minutos e 33 segundos de música num CD por causa de Beethoven. A duração da sua Nona Sinfonia, numa longa versão dirigida pelo maestro Wilhelm Furtwängler em Bayreuth em 1951 (ao que parece, por sugestão da mulher do vice-presidente da Sony), serviu de medida para aquele que se tornou o formato standard do disco compacto, numa época de competição furiosa entre a Philips e a Sony, no final dos anos 70. Lá ficaram os 74’ 33'’ e os  12 centímetros de diâmetro. Em CD? “Ah, já não tenho onde ouvir isso...”

Uma história reveladora da centralidade canónica de Beethoven. E de como a sua última sinfonia é o paradigma da “grande obra inteira”. Pode ser que a Nona Sinfonia, um verdadeiro hino à fraternidade, talvez já não seja hoje símbolo de nada, tão esgotada de ter sido usada para tudo, da publicidade aos hinos oficiais, do cinema à televisão, da música popular às mil versões eruditas da mesma Nona, sempre diferente.

Em Osaka, no Japão, juntam-se anualmente 10 mil cantores amadores para cantar no Natal a arqui-famosa Ode à Alegria. Mas Beethoven é demasiado grande para caber no sapatinho: a reedição integral da sua obra exige mais de cem discos. “Ah, já não tenho onde ouvir isso...” Lembram-se da canção da Clara de Brincando aos clássicos de Ana Faria, um sucesso infantil em 1982, “Ó Clarinha, olha as pombas...”, que não saía do ouvido? A culpa também é da Nona.

Ludwig van Beethoven, baptizado há 250 anos, no dia 17 de Dezembro de 1770, fez música como quem vive num combate permanente com o seu tempo, com os seus meios, consigo mesmo. A arte era, para ele, algo de decisivo para os seres humanos, um processo de conhecimento, uma luta pela liberdade. Ele não podia conceber a música como entretenimento de corte, mas antes como uma das maiores manifestações de humanidade, para os novos ideais republicanos do seu tempo: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Conta-se que terá dito a um príncipe: “Você é o que é por nascimento. Eu sou o que sou por mim mesmo. Há e haverá muitos príncipes, mas Beethoven só há um.”

Beethoven escreveu música insubmissa, por vezes violenta, por vezes interrogativa, e compôs uma única ópera, Fidelio, um poderoso drama-manifesto contra a tirania. Para Beethoven a música era pensamento e acção em direcção à Liberdade, ideal de letra maiúscula. Fosse uma sonata para piano, uma grande sinfonia ou uma gigantesca missa, a sua música precisava de encontrar os meios da sua expressão: precisava de intérpretes à altura, por exemplo quando deixou ele mesmo de poder tocar os seus magníficos concertos para piano, onde improvisava espantosamente como poucos do seu tempo. E exigia ouvintes dispostos a ouvir o que ele deixou de progressivamente de poder ouvir.

Exércitos de musicólogos e otorrinolaringologistas debateram a sua surdez objectiva, que faz agora parte do mito, e que ficou sua “imagem de marca”. Beethoven, pujante e desafiante, fazia os conservadores do seu tempo tapar os ouvidos. Para esses, aquilo já não era música. Mas muitos compreenderam-no e ajudaram a fazer o seu sucesso em vida. Isso Beethoven teve a sorte de ter, ao contrário de Schubert.

Comemorações em todo o mundo assinalaram este “ano Beethoven”, como se tivesse de ser, como uma obrigação que se cumpre sem saber bem para quê. Para espantar as ameaças de novos tiranos? Para reconstruir os ideais de Beethoven deixados em cacos no século XX? Para reanimar as salas de concerto? Talvez simplesmente para ouvir e re-ouvir a música de quem pensou que a arte era uma das produções mais decisivas do ser humano. Que podia ser motor de esperança e força de emancipação.

O suplemento Ípsilon do PÚBLICO desta sexta-feira dedica um grande dossier a Beethoven, com inúmeros depoimentos, reflexões, histórias e imagens sobre o “mito”, a sua vida e a sua música.

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