A geopolítica em John Le Carré

A penumbra da Guerra Fria, o temor pela escalada de armamentos e o eminente Armagedão nutrem o ciclo de livros e o apego do leitor à obra de Le Carré até 1989, mesmo que seja difícil apurar a real inclinação ideológica do narrador desse jogo do gato e do rato.

A penumbra da Guerra Fria, o temor pela escalada de armamentos e o eminente Armagedão nutrem o ciclo de livros e o apego do leitor à obra de Le Carré até 1989, mesmo que seja difícil apurar a real inclinação ideológica do narrador desse jogo do gato e do rato entre o que foi, ou duvidosamente ainda é, o Leste e o Oeste. Jogo também de sombras, onde até à queda do Muro de Berlim se procurava ler o futuro, e jogo onde o epílogo de cada livro não traz luz definitiva. Desfaz-se o Muro, que literalmente ele viu erguer, e continua o permanente jogo, entre caçadores e caçados. Repartidos, ainda que de modo mais esbatido, entre Leste e Oeste, talvez mais por conveniência ficcional, do que por outro determinismo.

Ao invés de Graham Greene, o universo ficcional de John Le Carré espraia-se exclusivamente pelo hemisfério norte — ressalvando a incursão queniana do O Fiel Jardineiro — e dentro deste prende-se sobretudo pela Velha Europa, da Inglaterra à Rússia, mesmo que esta, antes ou depois da queda do Muro de Berlim, permaneça sempre sob uma persistente neblina narrativa. Os russos que conhecemos ou adivinhamos, estão escondidos, dissimulados, transfigurados, longe do seu canto, ou em fuga para o seu canto. O outro lado do Atlântico também ficará lá onde bem pertence, de onde vem em incursão aos velhos europeus, para rever contratos e parcerias geridas à distância. O Panamá ou o Médio Oriente resultam como pontuais excursões, com regresso determinado ao constante Continente.

Londres, sem alguma dúvida, mas também Viena, Berlim, Bona, Lisboa, Hamburgo, algures no campo na Borgonha ou na Boémia ou até ali para as bandas de Aberdeen. Em todos os pormenores, do refúgio de luxo alpino ao apartamento do simples funcionário público, da sala de jogo de Monte Carlo à colectividade de apoio aos refugiados nos subúrbios de Hamburgo nos senta Le Carré nesta velhíssima e actual Europa, de onde invariavelmente vislumbramos uma “Rússia por um canudo”.

Inglês de todos os costados, até pelo seu “nom de plume”, Le Carré é sem qualquer dúvida um inglês em rotação permanente para o continente, seu e nosso.

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Mural do artista Dimitri Vrubel reproduz o famoso beijo entre os líderes soviético Brejnev e o seu homólogo alemão Honecker Artur Widak/NurPhoto/Getty Images

Os personagens centrais de Le Carré podem ser, alguns são mesmo, espiões, colaboradores dos serviços de informação, o que seja. Mas são antes de mais “humble public servants”, humildes funcionários públicos, respondendo numa cadeia indefinida de lealdades e deslealdades perante alguém que os governa, vá lá saber-se com que sabedoria. Em Londres ou em Moscovo, sempre por conveniência narrativa, ainda que o colapso soviético nos mude por alquimia da nomenclatura moscovita para a oligarquia na diáspora, agora bem mergulhada nesta parte mais central da Velha Europa.

Filho de jogador, Le Carré alimenta por si um outro jogo, a narrativa da traição e fuga, da cobiça e fraqueza, dos ancoradouros seguros da lealdade ou do amor e dos rombos nos segredos mais bem guardados. Neste caminho ficam para trás as confabulações dos poderosos, das caixas de correio do Panamá aos gabinetes de Whitehall, das corporações farmacêuticas que testam em vivos no Quénia, ao labirinto dos cofres numerados nas caves bancárias de Genebra ou Zurique.

Nada mais livre do que partir nas suas tamanquinhas e seguir um outro percurso, deixando para trás o adquirido, mesmo que uma simples pensão do Estado. Adquirido está, tudo o que David Cornwell, John Le Carré nos deixou.

         

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