O inimigo somos nós

Por causa de uns bilhetes de futebol e umas viagens, António Costa aceitou no passado demissões de membros do seu Governo. Por que espera agora?

“Encontrámos o inimigo, e o inimigo somos nós”, escreveu Paul Krugman há dias, na sua newsletter semanal. Justificava esta conclusão por razões económicas, porque “os conflitos de interesse dentro dos países são muito mais importantes do que os conflitos de interesse entre os países”, mas também por razões políticas. E concluía: “Eventos políticos recentes ensinaram os americanos, pelo menos, a temer o poder crescente de alguns grupos dentro deste país, mais do que tememos alguma ameaça hipotética do exterior.”

O terrível assassinato de Ihor Homeniúk e a grande desatenção que mereceu da maioria das instâncias políticas exige uma reflexão nacional. Como foi possível esta ignomínia e, pior ainda, a tentativa de a encobrir? Por que não nos mobilizámos de imediato para denunciar a barbaridade? Como pode uma democracia conviver com crimes hediondos como este?

Em 1978, Eduardo Lourenço já alertava para esta espécie de incapacidade colectiva de olharmos de frente para nós mesmos: “A regra do jogo, talvez até mais eficaz que no antigo regime, é a da desdramatização de todos os problemas nacionais. Uma Democracia não tem problemas e nós somos uma democracia.”

Mas a verdade é que continuamos a desdramatizar. Ninguém pode ignorar as terríveis consequências que este assassinato tem para todos nós. Ele revela-nos uma imagem repulsiva do funcionamento de um serviço público, inaceitável num regime democrático. As conivências e conveniências que tentaram abafar o caso são igualmente graves. O silêncio à volta dele, que só a insistência jornalística conseguiu quebrar e reverter, tantos meses depois, revela que a questão é bem mais funda. A democracia está a ser desconstruída, como Manuel Alegre tem denunciado em recentes entrevistas: “As democracias não estão a ser derrubadas com golpes de Estado, mas estão a ser minadas por dentro.”

Assistimos à corrosão de instituições que deviam suportar a razão de ser do nosso regime constitucional. Há uma estratégia internacional concertada para enfraquecer as democracias, não com ataques externos ou golpes militares, mas com infiltrações cirúrgicas nas forças policiais e em movimentos de protesto, já que razões para protestar não faltam. Portugal não é imune a essa estratégia. A única forma de a combater é a defesa permanente dos valores democráticos e a vigilância atenta contra todas as violações. A morte de Ihor revela que baixámos as guardas.

Perante este facto, não podemos satisfazer-nos com justificações processuais. A directora do SEF devia ter-se demitido na hora. Eduardo Cabrita devia ter actuado publicamente com a prontidão que uma tragédia exige. As explicações à Embaixada da Ucrânia não dispensavam uma pronta assistência à família de Ihor, que o Governo de António Costa só agora vem assumir. E Marcelo Rebelo de Sousa devia ter alertado os portugueses para esta morte que mancha a nossa Democracia.

O inimigo somos nós. Ou porque facilmente ignoramos o que “vemos, ouvimos e lemos”, ao contrário do que Sophia sempre fez. Ou porque mais facilmente ainda aceitamos desdramatizar o que não tem perdão. Ou ainda porque fechamos os olhos à forma sistemática como as forças anti-democráticas e iliberais estão a ocupar terreno e a minar os alicerces do regime. É tempo de enfrentar o declínio democrático, no mundo e em Portugal, erguendo a nossa voz, sem tibiezas, na condenação de toda a brutalidade e impunidade no exercício da autoridade do Estado. E exigindo, em nome da decência, que Governo e Presidente retirem as devidas ilações do que se passou. Por causa de uns bilhetes de futebol e umas viagens, António Costa aceitou no passado demissões de membros do seu Governo. Por que espera agora?

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