Palmo e meio de humanidade: será agora a revolução no acolhimento familiar de crianças e jovens em risco?

Diz-nos a investigação na área que os cuidados providenciados por um acolhimento familiar, o conceito e vivência de família numa família para isso seleccionada e capacitada proporcionarão à criança ou jovem um maior nível de habilidades e capacidades.

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Kelly Sikkema/Unsplash

O acolhimento familiar no nosso país é raro, incompreendido e, vastamente, sem reconhecimento. Reveste-se do mesmo traje de invisibilidade dos seres humanos de palmo de meio que chegam à porta para serem acolhidos. Diz-nos o relatório CASA 2019 que em Portugal, num universo total de 7046 crianças e jovens em situação de acolhimento, e no ano referente a este, apenas 191 destes se encontravam em situação de acolhimento familiar.

A lei portuguesa (Decreto-Lei 139/2019), finalmente dotada de portaria (Portaria n.º 278-A/2020), privilegia o acolhimento familiar ao acolhimento residencial, particularmente para crianças menores de seis anos, mas em qualquer idade até à maioridade. Diz-nos a investigação na área que os cuidados providenciados por um acolhimento familiar, o conceito e vivência de família numa família para isso seleccionada e capacitada proporcionarão à criança ou jovem um maior nível de habilidades e capacidades que serão fundamentais para o seu pleno desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e psicossocial, quando comparado com o acolhimento residencial (e como tal preferencial a).

Sabemos isto – afinal, crescemos em família e não sob tutela do Estado. Mas somos olhos colectivos que não vêem. Assim, esse ideal para crianças e jovens em perigo, estes entre os nossos mais fragilizados, não se traduz em realidade. Temos um receio nacional em os acolher, cuidar e amar. Porque é intrusivo, difícil e repleto de desconhecidos. O governo indica a preferência, mas não lidera em exemplo no encaminhar e assegurar a sustentabilidade do ideal do acolhimento familiar; os miúdos têm problemas, demasiados problemas; têm de se fomentar diálogos, inclusões e partilhas com as famílias biológicas, e com todo um sistema, que são difíceis de prever, manter ou navegar.

O que nos traz, então, esta nova regulamentação? O potencial de mudança – de revolução – através de mais apoio e, assim, um passo em frente no parar da nossa inacção conjunta. No entanto, não haja ilusões. Começa agora o trabalho árduo no seleccionar e treinar das famílias e no colocar em prática os regulamentos e medidas. Começam agora também as justificações. Como dizer a cada uma das crianças e jovens com necessidade de um lar, e que não o têm, o porquê? Não terão o mesmo valor que qualquer outra criança e jovem do país? Serão do “clube dos 7000 e tais” que, como tal, não têm direitos como os demais de crescer numa família, que não carecem de abraços, segurança, amor e carinho, individualização e identidade? Não há retórica que, mês após mês, ano após ano, sobreviva às quantificações numéricas: apenas três em 100 dos que necessitam chegam à porta de uma família que os acolhe. Não há, simples e brutalmente, mais portas. E não há Decreto-Lei nem portaria que, sozinhos, consigam inverter e corrigir este cenário.

O governo acordou, acordaremos todos? Se a nível regulamentar tem agora de se implementar o escrito, tem necessariamente de crescer em todos nós, qual semente, o querer cuidar colectivamente. Há afinal – finalmente – ajudas. Entre as alterações mais notáveis está o facto de a família de acolhimento, no alcançar dos deveres e obrigações enquanto tal, poder – finalmente – reivindicar despesas dedutíveis (como as de educação e saúde) na declaração fiscal anual. A família de acolhimento pode – finalmente – ter direitos equivalentes a direitos parentais na prestação de qualquer dos cuidados ao menor, tais como os concedidos a famílias biológicas ou adoptivas no âmbito do Código de Trabalho, como as faltas, horários ou licenças. O apoio pecuniário é também muito mais adequado do que a retribuição e subsídio até agora existentes. É uma realidade que – finalmente – se afasta da realidade sombria, obsoleta, desigual, revoltosa, que prevalecia.

Chegará tudo isto? Não. Tem de haver mais campanhas de promoção do acolhimento familiar, mais diálogo, mais esclarecimento, mais escutar quem fala na primeira pessoa do que acolher e ser acolhido – é preciso comunicar mais e comunicar bem. Sobre o bom e o mau, e tudo no meio. Sobre o que consola e o que atormenta. 

É sobre palmo e meio de humanidade.

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