Cuidados paliativos: muitos doentes com covid-19 teriam morrido “menos sozinhos e com menos dor”

Se os cuidados paliativos tivessem sido chamados mais vezes a ajudar na batalha contra a covid-19, teria havido “menos gente a morrer sozinha e com dor”, defendem médicos que estão treinados para garantir a qualidade de vida de doentes e familiares “até ao fim”

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Edna Gonçalves dirige o serviço de cuidados paliativos do Hospital de São João Nelson Garrido (arquivo)

Numa altura em que a pandemia provocada pelo novo coronavírus soma perto de cinco mil mortos, por que é que os cuidados paliativos não foram chamados mais frequentemente a atenuar a dor e o sofrimento dos doentes em fim de vida e dos seus familiares? Por que é que não foram chamados a ajudar a decidir se em relação a determinados doentes, sobretudo idosos ou pessoas com comorbilidades graves, insistir em medidas curativas como o oxigénio de alto fluxo ou mesmo o ventilador configurava ou não o risco de encarniçamento terapêutico? “Temos muita formação em discernimento bioético e, num mundo ideal, devíamos estar em todas as ‘equipas covid’. Mas não foi isso que aconteceu”, lamenta Edna Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, para arriscar uma resposta às perguntas enunciadas: “Os cuidados paliativos ainda não entraram na cabeça da maior parte dos médicos como uma opção terapêutica.”

Nos locais em que isso não aconteceu, como no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, que congrega os hospitais de Aveiro, Águeda e Estarreja, “houve muito menos gente a morrer sozinha e com dor”, atesta Beatriz Silva, coordenadora dos cuidados paliativos daquele centro hospitalar que, logo aquando da primeira vaga da pandemia, chamou os profissionais dos paliativos a integrarem as “equipas covid”, nomeadamente aquelas que foram prestar assistência aos idosos institucionalizados em lares. “Nalguns destes casos, os doentes estavam com um estado de doença tão avançado que não havia nada para oferecer em termos de internamento e de tratamento”, recorda a médica.

Segundo o último balanço divulgado pela Direcção-Geral da Saúde, e que remonta ao dia 25 de Novembro, tinham morrido 1409 idosos institucionalizados em lares com covid-19. Muitos dos infectados foram hospitalizados ou deslocados para estruturas improvisadas, o que contribuiu para agravar condições como a demência. Nos casos que contaram com a intervenção dos médicos do CHBV, os idosos infectados puderam continuar nos lares e os especialistas dos cuidados paliativos ajudaram no controlo de sintomas como a dor, a agitação e a falta de ar. “Em doentes em que o recurso ao ventilador era já uma intervenção fútil, isso fez uma enorme diferença: pudemos dar garantias de conforto, com administração de fármacos consoante os sintomas, sem os tirar do seu ambiente próprio, onde eles têm as suas referências e a mão amiga dos profissionais que já conheciam”, acrescenta Beatriz Silva.

Mesmo dentro das portas do hospital, Beatriz Silva relata que os especialistas em cuidados paliativos têm sido chamados a intervir porque “há dores muito difíceis de tratar” e, na sua maior parte, os médicos das restantes especialidades “continuam muito virados para o sentido estrito da cura, em detrimento do cuidar”. E terá sido por isso que, não obstante ter-se preparado para ajudar a responder à primeira vaga da pandemia, o serviço de cuidados paliativos do Hospital de São João, no Porto, que Edna Gonçalves dirige, não foi chamado a ajudar. “Ficámos lá, 12 horas por dia, sete dias por semana, mas referenciaram poucos doentes e normalmente muito em fim de vida”, recorda.

Paliativos em casa

Quando a segunda vaga começou, o remédio foi fazerem-se presentes na linha da frente. “Começámos a participar das reuniões [onde se ‘discutem’ os doentes] e fomo-nos oferecendo para ajudar”, prossegue Edna Gonçalves, lembrando que os profissionais dos cuidados paliativos já têm a cabeça formatada, pela especificidade das tarefas que normalmente desempenham, para ajudar a decidir se faz sentido insistir em determinadas terapias curativas ou mais vale suspendê-las. “Para algumas pessoas, é preferível morrer numa fase inicial da doença, sem insistir em medidas que só contribuem para tornar mais penoso o seu fim de vida”, enuncia, para exemplificar: “Uma pessoa com demência avançada, por exemplo, que em muitos momentos já não reconhece a família vai ou não para intensivos, se o seu estado se agravar? E um doente com 97 anos previamente saudável? Estas questões colocam-se aos profissionais e o discernimento tem de ser feito caso a caso, sobretudo porque as directivas antecipadas de vontade ainda são muito escassas”.

“Nós estamos treinados para fazer essa ponderação e para perguntar às pessoas até onde é que podemos ir nos cuidados, bem como a comunicar com a família sobre estas questões”, insiste, para garantir que, neste campo, bem como no da reabilitação dos doentes que perderam faculdades, como, por exemplo, a capacidade de deglutir, o trabalho dos médicos e dos enfermeiros dos paliativos tem sido “muito reconhecido”. “Há aqui um campo de trabalho imenso, nomeadamente nas enfermarias, que nem sempre está a ser feito”, precisa, para apontar os cuidados domiciliários, nomeadamente de doentes com covid-19, como outra das áreas em que o potencial dos profissionais dos cuidados paliativos vem sendo desperdiçado: “Estou convencida que muitos idosos com comorbilidades não precisariam de ter sido internados, se tivessem podido contar com cuidados paliativos domiciliários.”

“Em situações muito de fim de vida, uma equipa de paliativos pode fazer o trabalho sozinha e as pessoas vêem garantida a qualidade de vida até ao fim da vida”, acrescenta, reconhecendo embora que são escassas as 27 equipas comunitárias que existem no país - o preconizado era que houvesse pelo menos uma por cada um dos 54 agrupamentos de centros de saúde. Em Fevereiro deste ano, numa altura em que a lei que consagra o direito de acesso aos cuidados paliativos somava já oito anos de vigência, havia 381 camas exclusivamente dedicadas aos cuidados paliativos no país, das quais apenas 231 em hospitais de doentes agudos e as restantes na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. “Se calhar por isso, por sermos tão poucos e as equipas tão pequenas, é que as pessoas não pensam em nós”, conclui Edna Gonçalves.

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