Maradona a tocar o céu com as mãos

Como a música ou a literatura, o futebol consegue esporadicamente escrever alguma poesia.

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Um bailarino sublime a dançar nas quatro linhas. Um homem baixinho, com as pernas mais imprevisíveis da história do futebol, a acumular adoradores. Um fenómeno de má vida, boa vida, excessos variados, más companhias e companhia de casa de todos os que se lembram do século XX. Diego Armando Maradona era o maior mito do futebol e agora está morto.

“Posso ser branco ou negro, o que nunca serei é cinzento.” O culto mundial a um homem divino mas não super-homem também se percebe por isto. Mas na base da comoção que a sua morte provocou em lugares tão distantes da Argentina está a tal “mão de Deus” que fez a vitória da Argentina contra a Inglaterra em 1986 (pouco depois da guerra das Malvinas no que foi assumido como a doce vingança possível), e depois tomou Nápoles e Barcelona. Como a música ou a literatura, o futebol consegue esporadicamente escrever alguma poesia.

Em 2005, na televisão argentina, Maradona fez uma brincadeira: entrevistou-se a si próprio. O entrevistador pergunta ao entrevistado o que diria no dia da sua morte. Resposta: “Obrigado por ter jogado futebol, porque é o desporto que me deu mais alegria, mais liberdade, é como tocar o céu com as mãos.” Maradona tocou o céu com as mãos – e quem o viu apaixonadamente também.

Numa noite de 1989 também estive no estádio de Alvalade a ver o Sporting-Nápoles, em trabalho. Eu não percebia nada de futebolm mas os meus chefes queriam mesmo isso: ver o efeito que o mito Maradona produzia numa pessoa nova, sem currículo de desporto nem de coisa nenhuma. Foi nessa noite em Alvalade que o clube de fãs planetário de Maradona ganhou mais uma: a electricidade das pernas de Maradona em campo tornaram aquela uma das noites inesquecíveis da minha vida. As pernas de Maradona eram em si uma contradição: não eram atléticas ou fit, eram impressionantemente curtas e artífices do sublime.

Na sua última entrevista, ao jornal argentino Clarín, Diego Armando Maradona disse ser “eternamente grato ao povo”: “O que vivi nessa volta ao futebol argentino jamais esquecerei, excedeu o que eu poderia imaginar. Estive fora muito tempo e às vezes pergunto-me se as pessoas ainda me vão amar, se continuarão a sentir o mesmo.” Maradona tinha medo de perder o amor das massas, uma coisa normal num fenómeno, porque o amor das massas costuma ser breve. Mas com Maradona não foi assim.

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