Hungria e Polónia aceitam condicionalidade ao Estado de direito, mas exigem rever o regulamento

Nos seus países, Orbán e Morawiecki carregam na retórica contra a UE. Mas em Bruxelas usam argumentos jurídicos para justificar a sua oposição ao mecanismo do Estado de direito. E até avançam soluções alternativas para pôr fim ao impasse na aprovação do pacote de resposta à crise.

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Primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, contesta conclusões do Relatório Anual do Estado de direito na UE Bernadett Szabo/Reuters

Internamente, os primeiros-ministros da Hungria e da Polónia evocam a ameaça de uma suposta entrada de milhares de refugiados e migrantes muçulmanos, ou da obrigação de aceitar o casamento entre pessoas do mesmo género, para justificar às respectivas opiniões públicas a sua oposição ao novo mecanismo de Estado de Direito da União Europeia — e a promessa de veto do pacote financeiro de resposta à crise pandémica, numa derradeira tentativa de impedir a entrada em vigor do regime de condicionalidade na distribuição das verbas comunitárias.

Nos seus países, Viktor Orbán e Mateusz Morawiecki não têm problemas em carregar na retórica sensacionalista, e apresentar-se aos seus eleitores como os verdadeiros defensores dos valores europeus, numa espécie de cruzada pela matriz democrata-cristã da UE e contra as “decisões arbitrárias”, que definem como “desvios ideológicos”, da máquina burocrática e uma certa “oligarquia europeia” dominada pelos grandes países.

Contudo, em Bruxelas, os dois líderes têm evitado discursos políticos inflamados, e apresentado sobretudo argumentos jurídicos para tentar forçar uma revisão da proposta de regulamento do novo regime de condicionalidade que está em cima da mesa, e assim a abrir caminho à aprovação do histórico pacote financeiro de 1,82 biliões de euros para apoiar a recuperação da crise pandémica e promover a transformação ecológica e digital da Europa, tal como decidido na cimeira extraordinária de Julho.

“O que está em causa é o respeito pelos princípios da confiança, cooperação sincera e certeza jurídica que estão na fundação da União”, apontou o primeiro-ministro da Polónia, para quem a formulação prevista no rascunho de regulamento do mecanismo de Estado de direito é demasiado vaga e permite interpretações subjectivas e maliciosas que podem prejudicar o seu país.

O texto diz que um Estado membro poderá ser sancionado com a redução ou suspensão dos fundos se a Comissão Europeia identificar uma violação concreta do Estado de direito que possa afectar “a gestão prudente do orçamento comunitário ou a protecção dos interesses financeiros da União de forma suficientemente directa”.

Na reunião informal do Conselho Europeu por videoconferência da semana passada, Morawiecki referiu-se à existência de um “trauma” nacional, provocado pela decisão de accionar o procedimento contra a Polónia ao abrigo do artigo 7.º do tratado, com base em leituras erradas e mal-entendidos sobre a reforma do sistema judiciário descritas como violações do Estado de direito. “Fomos humilhados”, queixou-se.

Numa carta enviada aos presidentes da Comissão e Conselho Europeu, e a que o PÚBLICO teve acesso, o primeiro-ministro da Hungria também reclamou da abertura de idêntico procedimento contra o seu país, bem como das conclusões do primeiro Relatório Anual sobre o Estado de direito na UE, divulgado no final de Setembro. “Não está baseado nos factos e em grande parte só repete as críticas de motivação política lançadas [contra o Governo do Fidesz] pelos partidos da oposição e as ONG financiadas por George Soros na perseguição dos seus objectivos ideológicos”, acusa Orbán, referindo-se ao seu inimigo público número um.

Para demonstrar que não contesta a ligação das transferências à salvaguarda das normas democráticas, a Hungria até apresentou um rascunho alternativo aos seus parceiros, com ajustamentos para clarificar o regulamento e “manter um nível apropriado de protecção contra abusos políticos na aplicação deste mecanismo sancionatório”.

Tal como a Polónia, a Hungria argumenta que a salvaguarda dos valores da UE está vertida na lei fundamental, que é o tratado de Lisboa, e que o artigo 7.º já assegura a protecção das normas do Estado de direito. Não pode, por isso, conceber-se a introdução de um instrumento de direito secundário para reinterpretar as normas do direito originário, defende Orbán.

Apesar de haver um acordo político com o Parlamento Europeu sobre o regulamento do mecanismo de Estado de direito, e uma maioria qualificada no Conselho da UE a favor da sua aprovação, a presidência alemã ainda não iniciou o procedimento escrito com vista à adopção do futuro regime de condicionalidade. Por enquanto, só o primeiro-ministro da Eslovénia, Janez Jansa, se mostrou solidário com os protestos dos líderes húngaro e polaco. Mas o compasso de espera pode ser lido como um sinal de que os restantes países estão dispostos a avaliar melhor os argumentos jurídicos avançados pelos dois e desenhar uma solução.

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