Quando colocamos os profissionais de saúde nas trincheiras

Não é possível estalar os dedos e criar mais enfermeiros ou médicos. Temos de cuidar dos que temos e isso passa por manter as equipas motivadas, valorizando o seu papel na comunidade. Precisamos de mais e melhores meios? Sem dúvida.

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Reuters/STOYAN NENOV

O dia em que consegui o adiamento do serviço militar — que, há pouco mais de duas décadas, era obrigatório — ficou gravado na minha memória. Enquanto aguardava pela minha vez verificava repetidamente, ansiosamente, o comprovativo de ingresso na universidade. O processo, felizmente, foi célere e sem sobressaltos. E assim que me deram o carimbo da “reserva” suspirei de alívio.

Calcorreei as ruas da Invicta trauteando o clássico Máquina Zero, que espelha o que sempre senti:

“Não me façam guerreiro eu nunca fui audaz
Sou um gajo porreiro só quero viver em paz.”

É por isso que discordo do enquadramento bélico em que tentam catalogar a pandemia da covid-19. Eu percebo a vontade inicial de galvanizar os discursos que, concedo, pode ter sido bem-intencionada. Mas essa narrativa teve o efeito perverso de — passada a euforia inicial das palmas à janela — objectificar os médicos e enfermeiros. Passámos de heróis a meros peões que estão na linha da frente para dar “o corpo às balas”.

Deixem-me ser claro: nós não estamos numa guerra e eu não sou soldado. É verdade que muitos de nós, desde o primeiro dia, assumimos a nossa vocação cuidando dos nossos doentes, arriscando a nossa segurança, liderando respostas locais e sacrificando, neste processo, o tempo em família. Mas este comportamento decorreu do juramento de Hipócrates e não por estarmos num qualquer campo de batalha em que aspirantes a generais dão ordens rígidas.

Estamos, sem dúvida, num contexto difícil. Mas o estado de emergência decretado não suspende a democracia e o Estado de Direito. E ainda que perceba a fadiga dos longos meses e a fragilidade da economia, tal não pode servir de desculpa para atacar os mesmíssimos profissionais de saúde que há meses eram o centro de campanhas de marketing emotivas. Deixo-vos um exemplo concreto: a rotura do stock de vacinas contra a gripe sazonal. Algumas explicações apontam para a procura mundial excepcional e a limitação da oferta pela indústria. Independentemente do motivo (tema para outra crónica), uma coisa é certa: os enfermeiros de família e médicos de família não são os culpados.

Não me interpretem mal: o desabafo na consulta perante este constrangimento é natural e, como coordenador de uma Unidade de Saúde Familiar, valorizo as críticas construtivas do cidadão. Mas muitos colegas relatam ataques verbais agressivos (com insultos) presencialmente e nas redes sociais. Devemos ter todos tolerância zero com estes comportamentos que contribuem para o burnout das equipas, o qual, por sua vez, limitará a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Os profissionais de saúde são o activo mais valioso do SNS. São um recurso raro e altamente qualificado com um longo e exigente percurso formativo. A título de exemplo, um médico de família necessita de onze anos de formação até ser especialista em Medicina Geral e Familiar. Eu vou repetir: onze anos.

Portanto, não é possível estalar os dedos e criar mais enfermeiros ou médicos. Temos de cuidar dos que temos e isso passa por manter as equipas motivadas, valorizando o seu papel na comunidade. Precisamos de mais e melhores meios? Sem dúvida. Mas de nada vale ter mais ventiladores nos hospitais e melhores computadores nos centros de saúde se os recursos humanos estiverem exaustos pelo desgaste deste bullying. Como sou optimista, acredito que, com esta e outras chamadas de atenção à navegação, podemos inverter a espiral descendente e, já hoje, iniciar a construção do SNS pós covid 19. Este é o momento para criar pontes que vão unir as margens actualmente separadas pela desinformação e indignação

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