O xeque ao rei da China na Ásia-Pacífico

1. Para muitos foi uma surpresa verem as paixões que o xadrez despertava nos anos 1960 e 1970 e a importância simbólica que teve durante a Guerra Fria. O mérito é da séria de televisão The Queen's Gambit/Gambito de Dama que adaptou, de forma notável e ao gosto e à sensibilidade actual, a obra ficcional do escritor norte-americano Walter Tevis, originalmente publicada em 1983. Mas o mérito é também muito desse escritor que praticamente tinha caído no esquecimento. A personagem central, Beth Harmon (interpretada na série por Anya Taylor-Joy) e o enredo são, em grande parte, inspirados na vida do próprio Walter Tevis. Nessa época o xadrez, tal como armamento militar nuclear, a ideologia política, o sistema económico e os jogos olímpicos, eram múltiplas facetas da vida humana onde os Estados Unidos e a antiga União Soviética competiam pela superioridade no mundo. Como jogo de estratégia com longuíssimas tradições, feito com o objectivo de derrotar o adversário através de um xeque-mate imobilizando o rei, espelhava, com renovada sofisticação intelectual, a intensa competição geopolítica no mundo. Nos campeonatos mundiais de xadrez da Guerra Fria algumas das partidas entre os grandes mestres soviéticos e norte-americanos são memoráveis. Talvez a competição mais épica (o jogo do século”) tenha sido a disputada em 1972, em Reiquiavique, na Islândia, entre Boris Spassky, da União Soviética, e Bobby Fischer, dos EUA (foi vencida por este último).

2. A possibilidade de uma nova Guerra Fria, agora travada entre os EUA e a China, paira, outra vez, no mundo. A ocorrer não terá, naturalmente, os mesmos contornos do passado. Vivemos num outro mundo, globalizado e com um grau de interdependência que não existia entre 1945 e 1989. Nos últimos trinta anos a China não se auto-excluiu do comércio internacional capitalista como fez a União Soviética, que recusava essa participação por razões ideológicas. (Provavelmente esteve aí a causa maior de colapso do modelo soviético, assente numa economia de direcção central, que acabou por levar também à desagregação da própria União Soviética em 1991.) A China aprendeu muito com o fracasso soviético. Construiu o seu próprio modelo económico neomercantilista, orientado pelo Estado e pelo Partido Comunista, superficialmente cooptando o capitalismo. Nele, a atracção do investimento externo — nas condições que a própria China dita — e as exportações para os mercados externos são fundamentais para a sua prosperidade e poder. Assim, uma nova Guerra Fria até pode fazer lembrar certos aspectos do passado. Por exemplo, os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, mostraram uma competição sino-americana no desporto que quase replicava a competição soviético-americana. Mas no terreno político-económico-militar a realidade hoje é bem mais complexa e multifacetada.

3. Na actual competição pela supremacia mundial o título de 14/11/2020 do Global Times, um jornal em língua inglesa do Partido Comunista da China, não deixa dúvidas sobre o momento de triunfalismo que se vive nesta altura na China: o acordo de Parceria Económica Abrangente Regional/Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) “vai acabar com a hegemonia dos EUA no Pacífico ocidental”. É uma espécie de xeque ao rei dado aos EUA — ou seja, à actual potência global dominante — facto que, na óptica chinesa, dá boas perspectivas para um futuro xeque-mate. Sobre esse acordo, acrescenta ainda o já referido jornal Global Times o seguinte: O RCEP envia a mensagem de que os países asiáticos não querem escolher um lado, entre os EUA e a China. Mais significativamente, não estão dispostos a seguir cegamente os EUA e a excluir a China, a maior e a mais vibrante economia asiática, do processo de integração da região.” A China saboreia assim um importante sucesso da sua paciente estratégia. Após longos e incertos anos de negociações, os dez Estados da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), mais a China, a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia — os quatro últimos aliados político-militares dos EUA na Ásia-Pacífico — concordaram em assinar esse enorme acordo comercial regional, o qual tem um inevitável impacto global.

4. Não sei se Xi Jinping e o Governo da China vêem o comércio internacional como um jogo de xadrez. Vejam ou não assim o mundo, o que é indubitável é o facto de o comércio internacional ser uma peça (muito) importante da grande estratégia chinesa de afirmação mundial — e também uma hábil arma geopolítica ao seu dispor. Assim, tal como é feito por um jogador de xadrez de alto nível, a estratégia chinesa traduz-se em múltiplos movimentos em várias direcções (alguns parecem inofensivos para iludir o adversário). Nessa estratégia, o jogador vitorioso move as peças no momento exacto, antecipando-se aos movimentos do adversário. Corta assim o caminho às (boas) alternativas de resposta até que o adversário, de forma mais lenta ou mais rápida, acabe por ficar sujeito a um xeque-mate. Pela sua dimensão, a RCEP ultrapassa os acordos comerciais anteriormente efectuados pelos EUA e pela União Europeia. Em termos de Produto Nacional Bruto (PNB), o conjunto das economias que dela fazem parte tornou-o no maior acordo comercial do mundo. Ao reforçar a tendência em curso de deslocação do centro económico e político do mundo para a Ásia-Pacífico — envolvendo os mais importantes aliados dos EUA na região, com a excepção de relevo da Índia —, serve o interesse nacional chinês. Mais do que isso, é uma peça da sua grande estratégia para criar um mundo global sinocêntrico. O próximo passo cabe aos EUA, mas nesta altura estão consumidos por uma tumultuosa transição presidencial. Por isso, o timing é perfeito para a China. Teremos de esperar pelo próximo ano para conhecermos a estratégia de resposta do futuro presidente norte-americano e o seu grau de sucesso. Para já, é a China quem saboreia o xeque ao rei na Ásia-Pacífico.

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