SNS gastou 54 milhões com testes à covid-19 feitos pelos laboratórios privados

Portugal já realizou mais de quatro milhões de testes para detectar infecções com o novo coronavírus. Exames de antigénio começaram a semana passada a ser realizados em massa. Saliva pode vir a ser amostra alternativa às secreções da faringe

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Reuters/MASSIMO PINCA

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) gastou pelo menos 54 milhões de euros até agora em testes moleculares para detectar infecções pelo novo coronavírus realizados pelos laboratórios privados. Esta semana foi ultrapassada a fasquia dos quatro milhões de testes realizados desde o início da pandemia, 45% dos quais executados no sector público e uma percentagem semelhante no privado. Os restantes foram feitos em laboratórios de universidades. 

Na semana passada, começaram a ser utilizados em massa os testes rápidos de antigénio, tendo todos os dias úteis passado a fasquia dos mil por dia. Na sexta-feira passada chegou-se perto dos 2700 exames rápidos, mesmo assim muito longe do recorde de quase 47 mil testes realizados num só dia, que se registou nessa mesma sexta-feira. Apesar disso, Portugal já não aparece no top 10 mundial dos países com mais testes de diagnóstico do novo coronavírus por milhão de habitantes, como acontecia em Abril. Mesmo assim esta terça-feira Portugal surgia em 29º. lugar no Worldometers, acima da Alemanha e da França numa lista que inclui mais de 200 países.  

Apesar dos laboratórios privados terem realizado até 4 de Novembro, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 1,5 milhões de testes moleculares para detectar a covid-19, menos de 40% terão sido pagos pelo erário público, segundo estimaram ao PÚBLICO responsáveis das principais redes de laboratórios privadas do país. Tal significa que uma fatia significativa saiu do bolso dos particulares que realizaram os testes, que desembolsaram à volta de 100 euros por análise. Também empresas, instituições do sector social e seguradoras estão no rol dos principais clientes.

A Administração Central do Sistema de Saúde informou o PÚBLICO que, entre Março e Setembro, foram apresentadas facturas no valor de quase 41,6 milhões de euros pelos laboratórios que têm convenção com o Serviço Nacional de Saúde. Tal corresponde a um total de 474.788 testes, a maior parte dos quais pagos a 87,95 euros. Só nos últimos dias de Setembro é que o SNS passou a pagar 65 euros por exame molecular. Os restantes 12,4 milhões de euros que terão sido gastos em Outubro e na primeira metade deste mês resultam de uma estimativa, conservadora, feita pelo PÚBLICO com base no número de exames realizados pelos laboratórios e a percentagem que estes dizem ser paga pelo SNS.

A ACSS justifica só ter os valores até ao final de Setembro “devido ao tempo de processamento necessário relacionado com a facturação”. O PÚBLICO solicitou à Associação Nacional de Laboratórios Clínicos o número de testes realizados em Outubro e nos primeiros dias de Novembro, mas a entidade não disponibilizou o número. Não deixou, contudo, de destacar um quadro da execução orçamental do Ministério da Saúde, com dados acumulados até Setembro, que notava que até esse mês tinham sido gastos 969 milhões de euros em meios complementares de diagnóstico e terapêutica, menos 73 milhões do que o desembolsado nesta rubrica o ano passado até à mesma altura.

O PÚBLICO questionou igualmente o Ministério da Saúde sobre o valor gasto com os testes moleculares no sector público, mas este argumentou que esse número só poderá ser dado por cada uma das 41 instituições do SNS com capacidade para fazer estes exames de diagnósticos. E não será fácil chegar a um valor exacto, porque muitos dos custos (por exemplo, aos recursos humanos) são repartidos por vários meios de diagnóstico, estando integrados nos normais custos de funcionamento daqueles serviços. 

Os responsáveis das maiores redes de laboratório do país, como a Unilabs e a Germano de Sousa, sublinham que entre Março e Maio a sua actividade esteve praticamente circunscrita à covid-19, o que teve um impacto muito negativo nas suas contas. O médico Germano de Sousa, por exemplo, sublinha que apesar disso não despediu ninguém, nem realizou qualquer lay-off, como aconteceu com a Unilabs. Os lucros que os testes à covid-19 estão a trazer a estas empresas só serão verificáveis em meados do próximo ano, quando estas forem obrigadas a entregar nas conservatórias as respectivas contas.

Apesar de admitirem realizar testes rápidos de antigénio, que custam cerca de um terço dos testes moleculares, os laboratórios privados parecem querer continuar a apostar nos testes moleculares que procuram o material genético do próprio vírus, conhecidos por RT-PCR, que continuam a ser considerados os de referência por apresentarem uma maior fiabilidade. A Unilabs anunciou no início do mês a abertura, em Matosinhos, do maior laboratório de biologia molecular do grupo na Península Ibérica, com capacidade para a realizar entre 12.000 a 15.000 testes de despiste para a Sars-Cov2 por dia. 

Para perceber a evolução que o negócio dos testes de detecção do novo coronavírus teve basta recuar aos dados de Março, quando se confirmou a primeira infecção em Portugal, mês em que se realizaram 80 mil testes. Em Junho o número já subia para 355 mil e em Setembro para 566 mil. Ao longo dos 31 dias de Outubro realizaram-se perto de 827 mil teste, um número que vai ser ultrapassado em Novembro.

Tiago Guimarães, director do serviço de Patologia Clínica do Hospital de S. João, no Porto, um dos maiores centros hospitalares do país, garante que apesar da pressão da procura, o sistema de saúde está a resolver melhor a questão do que em Março ou Abril. O patologista reconhece que os novos testes rápidos de antigénio não têm a mesma performance que os RT-PCR, mas insiste que são úteis e permitem poupar recursos numa fase em que o sistema vai estar muito tempo sob pressão.

O director da Patologia explica que o S. João levou a cabo um estudo, ainda em fase final, com 190 amostras, que foram sujeitas simultaneamente a testes moleculares e de antigénio rápidos e apontam para uma sensibilidade de 86% destes últimos. Ou seja, o teste detectou 86 em cada 100 casos positivos. O principal problema prende-se com os falsos negativos – no estudo não foram detectados falsos positivos – mas essa questão é ultrapassada com a selecção da amostra. Isto porque se o exame for feito apenas a pessoas com sintomas e nos primeiros cinco dias após o aparecimento da doença, a sensibilidade sobe acima dos 90%. “É uma questão entre o óptimo e o bom”, resume Tiago Guimarães. O patologista lembra que quanto maior for a carga viral mais contagiosas são as pessoas, logo o teste permite detectar os mais contagiosos, sendo que alguns positivos detectados pelos exames moleculares podem já não ser contagiosos.

Também Raquel Guimar, responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o vírus da Gripe e Outros Vírus Respiratórios do Departamento Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), defende a utilização dos testes de antigénio “em determinadas circunstâncias”. A virologista explica que quando estes testes apareceram em Abril ou Maio a sua fiabilidade era bem pior que a referida pelo fabricante. “Entretanto outros fabricantes ou os mesmos colocaram novos testes no mercado e estes já coincidem mais com o referido. Os estudos independentes indicam níveis de sensibilidade entre 80 e 90%”, afirma Raquel Guiomar. Por outro lado, a responsável do INSA realça que a rapidez dos resultados permite identificar mais cedo surtos em lares ou escolas, o que possibilita o isolamento precoce dos mais contagiosos. Não ignora uma desvantagem, igualmente sublinhada por Germano de Sousa e pelo director clínico da Unilabs, Maia Gonçalves: como têm que ser realizados um a um, estes testes têm uma logística mais complicada, que dificulta a sua realização em amostras muito grandes.

O S. João e INSA têm igualmente a decorrer estudos para avaliar a fiabilidade de se recorrer à saliva como amostra dos testes de detecção de covid-19. Tiago Guimarães assegura que até agora os resultados são bons e acredita que, em breve, a saliva será uma alternativa à zaragatoa. “A colheita é mais simples e demora menos tempo a processar”, nota o patologista. Raquel Guiomar e Germano de Sousa são mais cautelosos. “As células da mucosa da nasofaringe são muito mais ricas do que as da saliva. Mas na impossibilidade de recolher essa pode ser uma alternativa. Ou uma opção para testar crianças em surtos nas escolas”.

Notícia actualizada às 15h45 com parágrafo que explica porque não foi possível contabilizar quanto custaram os testes moleculares para detectar o novo coronavírus no SNS. 

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