Credibilidade

Da pós-verdade cada vez mais em voga na política às “notícias falsas” que Trump popularizou, da evolução dos meios tecnológicos de transmissão da notícia à importância que os media atribuem ao que diz “um filho da puta analfabeto” (parafraseando Perez-Reverte, ao PÚBLICO), muito caberia escrever sobre o momento que vive a Imprensa. Deixando para depois temas da actualidade, limito-me, hoje, ao que considero ser a raiz e o cerne do maior desafio que enfrentam os media: a credibilidade da informação que transmitem.

Jornalista e leitor de jornais há meio século, tenho um pé em cada um dos dois campos. Como leitor, esqueço muitas vezes o que o jornal me traz de bom para ver apenas o que nele me irrita: a gralha, o erro de ortografia, o título mal feito, a fotografia sem legenda, a escrita tendenciosa, a não confirmação da notícia junto de uma segunda fonte, a ausência do contraditório, as informações incompletas, a mistura dos factos com a opinião…

Como jornalista (que também errou), com algumas décadas passadas em redacções onde furiosamente se construía o efémero, sei muito bem o que está por detrás de muitas destas falhas: o tempo que aperta, a pressão do “fecho”, o medo de passar ao lado da notícia, a sobranceria, a fonte de confiança que nos manipula, os contratos de trabalho precários (que deixam o jornalista à mercê de critérios de rendibilidade), o dia particularmente complicado lá em casa, o cansaço, o humano cansaço... Pode haver superleitores; não há superjornalistas.

Tudo é então desculpável? Claro que não. O jornalismo não é uma ciência exacta, mas nem tudo o que pode ser explicado pode ser inocentado. Há limites para os erros que os jornalistas cometem quando violam as fronteiras que o código de deontologia e o estatuto editorial do medium onde trabalham impõem a todos, sem excepção. Porque cada falha grave do jornalista belisca a consciência cívica individual e reforça outro tanto a inconsciência e a ignorância colectivas.

A polémica em torno da falta de credibilidade da Imprensa não é nova. Ela era marginal, salvo nas guerras, quando pressionada pela propaganda. Outro tanto não acontece desde que os militares e a Administração dos EUA culparam a Imprensa pelo desfecho da guerra do Vietname. “Never again!​” Como evitar que o problema se repetisse em guerras futuras? Excluída que estava a possibilidade de instituir a censura, a solução encontrada foi lançar o descrédito sobre os media [1]. Considerado responsável pela oposição da opinião pública à continuação da guerra, era preciso que o apresentador do telejornal da CBS, Walter Cronkite, símbolo do jornalismo honesto e a personalidade mais credível dos Estados Unidos, segundo as sondagens nacionais, deixasse de o ser.

A operação foi desencadeada em duas frentes. A primeira consistiu em impedir os jornalistas de aceder às informações classificadas como secretas, por muito que elas fossem de interesse público. A invasão da ilha de Grenada pelas forças armadas estado-unidenses, em 1983, serviu de ensaio geral à futura regra do blackout informativo. Os militares impediram os jornalistas de aceder à ilha. Com uma consequência imediata: “Quando são impedidos de ‘cobrir’ uma guerra, os jornalistas acabam por imaginá-la”, alertou na altura Charles Vanhecke, do Le Monde, um dos quinhentos jornalistas que esperavam na vizinha ilha dos Barbados por uma autorização de entrada em Grenada [2]. A armadilha estava a funcionar, com a Imprensa a cair na tentação de inventar, actuando ela mesma como agente manipulador da informação.

A segunda frente, que apostava em resultados mais imediatos, passou por apresentar o jornalista, em duas grandes produções cinematográficas, como uma personagem execrável, sem princípios nem respeito pela vida humana, pronto a tudo sacrificar para obter um scoop. Assalto ao arranha-céus e Assalto ao aeroporto, comercializados, respectivamente, em 1988 e 1990, colocam frente-a-frente um polícia “bom” (Bruce Willis) e um jornalista “mau”. A personagem do jornalista é de tal modo abjecta que o espectador partilha com entusiasmo o murro que o herói lhe dá no final do filme.

Ao ensaio geral de Grenada seguiu-se a segunda guerra do Golfo, onde a batalha que agora nos importa foi travada entre os estados-maiores e os jornalistas. Apostando na evolução tecnológica dos meios de transmissão da imagem, as televisões tinham prometido uma “guerra em directo”. Para garantir a qualidade desse “jornalismo-espectáculo”, o relato foi entregue aos apresentadores dos telejornais, para o efeito promovidos a repórteres. Na verdade, a única coisa que as opiniões públicas tiveram em directo foi a cara desses jornalistas, que nada tinham para mostrar de uma realidade a que não podiam aceder. A armadilha fechava-se sobre o jornalismo. Em vez de afirmar “Não posso informar porque não me deixam aceder à informação”, os “pivots” (mas não só) caíram na armadilha e começaram a inventar. “Algures no deserto”…

A Imprensa ainda tentou salvar a honra do convento. Num célebre editorial, o New York Times resumiu brilhantemente a situação – militares cem, jornalistas zero. Mas a influência e o poder da Imprensa já tinham sido ultrapassados pelos das televisões. Sem fazer a distinção entre os media honestos e os que não o tinham sido, as opiniões públicas arrumaram a maioria deles no saco da pouca credibilidade. Do mesmo passo, o poder político aproveitou (e continua a aproveitar) esse descrédito para gerir em benefício próprio a comunicação com o cidadão, no dia-a-dia.

Estava criado um abismo para onde muitos media se iriam precipitar e aberta uma nova era na longa história do jornalismo. É aquela em que vivemos. A cobertura da guerra do Golfo banalizou o que classifico como “jornalismo aproximativo” e o seu corolário, a informação de superfície. Desde então, eles imperam no conjunto dos media mais populares, com destaque para as televisões comerciais de informação em contínuo e os jornais tablóides, aumentando progressivamente a distância que separa o cidadão da informação transmitida pelos media. Agora já não se inventa só nas guerras; inventa-se no quotidiano da paz. A imprecisão tornou-se o novo normal, caracterizado por uma corrida insensata e aberrante para transmitir a “notícia” em exclusivo – ainda que não haja notícia.

O jornalismo honesto é então uma causa perdida? Não, três vezes não. Em todos os regimes democráticos há jornais e jornalistas que continuam a lutar para manter viva a credibilidade dos media e a relação de confiança com as opiniões públicas, resistindo às sereias da especulação, da falta de rigor, do facilitismo. É um desafio que os fundadores, os jornalistas, os leitores e os ex-provedores do PÚBLICO nunca recusaram até hoje – nem creio que venham a recusar no futuro.

[1] Baseando-se em documentos a que teve acesso, Chantal de Rutler, no Nouvel Observateur, defende que o estudo de uma solução alternativa à censura foi realizado pela Fundação Rockefeller.
[2] Na altura foi impossível obter, em tempo útil, um visto de entrada em Grenada para um jornalista da “Grande Reportagem”, da RTP1.

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