Como chegar às vítimas de mutilação genital? Criando uma rede para cuidar de meninas e mulheres

Mais de metade dos inquéritos abertos em Portugal por eventual crime de MGF tiveram origem na Amadora, onde uma comunidade de saúde atenta confirma os resultados do projecto Práticas Saudáveis.

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LUÍSA FERREIRA

Estima-se que vivam em Portugal mais de 6500 mulheres submetidas à mutilação genital feminina (MGF) e que cerca de 1800 raparigas com menos de 15 anos estejam em risco de o ser. Destas meninas e mulheres, conhecemos apenas cerca de 500, a maioria das quais sinalizadas décadas depois do corte, graças a um esforço da área da saúde para identificar sobreviventes desta prática. Quase metade destes casos foram registados apenas nos últimos dois anos, em grande parte em resultado do projecto Práticas Saudáveis, que actua em dez territórios na região de Lisboa e Vale do Tejo para formar profissionais de saúde e capacitar as equipas para actuar em conjunto com escolas e associações comunitárias. 

São “momentos-chave do ciclo de vida da menina-mulher”, como a escola (saúde escolar) ou a gravidez e parto, aqueles em que os profissionais de saúde conseguem estar presentes, descreve a médica de saúde pública Margarida Paixão, do Agrupamento de Centros de Saúde da Amadora, um dos concelhos com comunidades afectadas pela MGF, que tem sido também aquele onde os resultados do trabalho são mais visíveis. Já a enfermeira Teresa Figueiredo, que trabalha numa unidade de cuidados na comunidade de Odivelas e tem uma pós-graduação nesta área, explica que a abordagem tem que ser cuidada, com tempo para ganhar confiança. “Não é abordar à primeira, ‘olhe, você foi mutilada?’” Pode-se fazer uma observação da mulher quando vai à consulta de planeamento familiar, conversar, criar proximidade: “Venha cá daqui a 15 dias e voltamos a falar”, exemplifica.

“A formação de profissionais de saúde é decisiva e uma intervenção também muito capacitadora”, confirma a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, que tem promovido projectos no âmbito do combate às práticas nefastas contra as mulheres em parceria com as congéneres da Saúde. A médica Margarida Paixão concorda. “Não se encontra uma coisa de que não se está à procura” e identificar casos de mutilação genital feminina não é tarefa simples “mesmo para um olho que já é muito treinado”. 

A Amadora conta desde o ano passado com um guia para escolas e um protocolo de actuação integrada - que explica os passos a dar nas áreas da saúde, educação, justiça e comissões de protecção de menores -, elaborado com o apoio da Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde (AJPAS) e com o apoio da Câmara Municipal. Há também números que mostram que o sistema está em comunicação: entre oito inquéritos abertos em Portugal no último ano por eventual crime de mutilação genital feminina, cinco tiveram origem na Amadora, depois de acompanhados pelos serviços de saúde. Margarida Paixão, que aqui trabalha como médica desde 2017, sublinha que, quando chegou ao território, “já havia muito trabalho para trás”, com particular impulso do actual delegado regional de saúde António Carlos da Silva. 

Para cada caso que implica intervenção da parte da justiça, há outras histórias de sucesso na prevenção. A presidente da CPCJ da Amadora, Ana Neves, conta ao PÚBLICO que no ano passado a comissão acompanhou oito crianças por perigo de mutilação genital feminina, cinco delas sinalizadas pela área da saúde, mas nem todas as situações passaram pela justiça. Pela comissão já passaram casos como o de uma menina de cinco anos que foi levada de férias para a Guiné-Bissau quando já estava sob o radar da CPCJ. Sendo esta uma situação em que as famílias por vezes aproveitam para submeter as meninas ao “fanado”, como é conhecido o ritual na Guiné, as técnicas da comissão entraram em contacto com uma organização naquele país, que por seu turno falou com a família e conseguiu assegurar que os pais conheciam as leis de ambos os países. Quando a menina voltou, “não tinha sido mutilada”. 

Ao contrário do que acontece em outras situações de maus-tratos, “o risco já é um perigo”, mas é preciso também cuidado para não estigmatizar as comunidades. “Não tenho dúvidas de que estas pessoas querem o melhor para as suas filhas. É uma prática horrível, mas tem uma base de purificação, de aceitação pela comunidade.” E a melhor forma de mudar a mentalidade das famílias é abrindo o diálogo. Ana Neves recorda do caso de uma mulher com quem conseguiu falar sobre esta prática pelo simples facto de haver panfletos escritos em crioulo. “Era um simples panfleto que estava em cima da mesa.”

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