Pandemia fez explodir o tráfico de bens culturais pelo mundo fora

UNESCO e outras organizações internacionais alertam para a proliferação de negócios ilegais na Internet. Diminuição da vigilância nos museus e sítios arqueológicos abre caminho à pirataria do património.

Foto
Palmira, na Síria, foi um dos alvos da destruição do Estado Islâmico JOSEPH EID/ AFP

Mesmo não havendo ainda factos nem números suficientemente documentados, é convicção das autoridades internacionais da área do património que a pandemia da covid-19 fez aumentar exponencialmente o tráfico de bens culturais um pouco por todo o mundo, na sequência do abandono ou da diminuição da vigilância de museus, sítios arqueológicos e outros lugares de interesse patrimonial. E os sinais mais evidentes dessa situação encontramo-las nas redes sociais, que cada vez mais são aproveitadas para este negócio ilegal

“A pandemia é um flagelo”, e também na área do património, disse à agência AFP, citad0 pelo Le Monde, Ernesto Ottone, ex-ministro da Cultura do Chile e actual subdirector-geral da UNESCO.

O diário francês cita igualmente um professor e arqueólogo sírio, Amr Al-Azm, que calcula que actualmente existirão já perto de “130 grupos, a maior parte deles árabes”, a dedicarem-se ao tráfico e à venda de bens culturais na Internet para um mercado que poderá atingir meio milhão de potenciais compradores.

O cálculo deste professor da Shawnee State University, no Ohio (Estados Unidos), parte do estudo realizado no ano passado, num tempo ainda pré-pandemia, pelo projecto internacional Athar, dedicado à investigação do tráfico de antiguidades, segundo o qual foram identificados no Facebook 90 grupos consagrados a esse negócio, para um mercado de 300 mil utilizadores.

Já no período da pandemia, avança o Le Monde, a Organização Mundial das Alfândegas chamou a atenção para o facto de o recurso ao teletrabalho e a generalização da utilização da Internet em todo o mundo terem trazido consigo “um aumento de negócios ilícitos” na rede, nomeadamente de venda de artigos de contrafacção.

Na sequência do levantamento feito pelo projecto Athar (palavra árabe que significa “antiguidade”), e alertadas pela UNESCO, plataformas como o Facebook e o Instagram modificaram, em Junho passado, as normas de funcionamento dos sites de vendas, com o objectivo de interditar o negócio ilícito de artefactos históricos. Uma iniciativa que Ernesto Ottone considera “uma vitória para os 50 anos da Convenção”, referindo-se à celebração da data em que a UNESCO assinou em Paris um acordo multilateral estipulando as medidas a adoptar para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais.

Menos optimista mostra-se Amr Al-Azm, que teme que esta declaração de intenções se revele “letra morta”. O professor e arqueólogo sírio, que dirige também uma ONG de defesa do património, alerta que não é suficiente “apagar os traços” destes negócios, e assim destruir as provas da sua existência; é preciso, pelo contrário, registá-los e documentá-los, defende.

Pandemia e guerra

O país de Al-Amz, a Síria, é, de resto, um dos lugares actualmente mais sujeitos à proliferação de pilhagens e transacções ilegais de património cultural, devido à situação de guerra, agravada pela pandemia e pelas suas consequências ao nível do abandono e do desinteresse pela salvaguarda dos bens patrimoniais. No topo do ranking dos países mais afectados neste domínio, pelas mesmas razões e também pela sua situação geopolítica, estão o Iraque, o Líbano, o Afeganistão e o Iémen. Mas não é só no Médio Oriente que a situação é grave, já que também a África subsariana e a América Latina são terreno fértil para estes negócios sem fronteiras, que dificilmente poderão ser vigiados no contexto da pandemia, mesmo por instituições com essa vocação.

“A Interpol não possui provas quanto a um aumento de escavações ilícitas. Mas podemos supor que, numa altura em que todas as energias estão viradas para a manutenção da segurança sanitária, em que há menos vigilância, nomeadamente em sítios arqueológicos muitas vezes afastados das cidades, os outros domínios são menos cobertos”, reconhece Corrado Catesi, coordenador do departamento de obras de arte desta polícia internacional.

E se, por exemplo, na Europa, há situações que facilmente chegam ao conhecimento público – como foi o caso, no passado mês de Março, do roubo de uma pintura de Van Gogh, O Jardim do Presbitério de Neunen com Figura Feminina, do Museu Singer Laren, nos arredores de Amesterdão, que se encontrava fechado por causa da pandemia, ou o caso ocorrido em Junho, e agora recordado pelo Le Monde, da tentativa de roubo de pedras da Catedral Notre-Dame de Paris, numa altura em que os trabalhos de restauro do templo parcialmente destruído pelo fogo de 2019 se encontravam parados também por causa da covid-19 –, este é verdadeiramente um problema sem fronteiras, e que merece a atenção e o cuidado das autoridades.

Atenta a este facto, a própria UNESCO, citando o trabalho do projecto Athar, alertava já em Abril para “o ressurgimento da venda, nas redes sociais, de objectos roubados especialmente do Oriente Médio e do Norte da África”, a que se seguiria a decisão do Facebook de proibir o comércio de objectos culturais históricos na sua plataforma. Em Junho, a organização promoveu uma reunião online com especialistas mundiais na luta contra o tráfico ilícito de bens culturais. “O desafio é grande. Rastrear a origem de uma antiguidade ou de uma obra de arte roubada não apenas permite deter os traficantes e levá-los à Justiça, mas também abre caminho para que os objectos sejam devolvidos aos seus países de origem”, referiu então a UNESCO.

Mas a pandemia parece que ainda vai no adro…

Sugerir correcção