Abraçar o momento Biden-Harris

Uma presidência Biden pode reverter a vaga autocrática e travar a destruição da ordem multilateral.

Em 2016, a vitórıa de Trump foi uma notícia dolorosa.

Em 2020, a sua tentativa desesperada para sabotar o processo eleitoral é o canto de cisne de um autocrata, a que a democracia americana soube e saberá resistir.

A democracia já regredia, mas foi a vitória de Trump que lhe deu o sentido trágico de vaga autocrática: o Brasil elegeu um reacionário, o Reino Unido abandonou a UE e a extrema-direita ganhou vento na Europa.

O regime de regras e direitos e as instituições internacionais que o sustentam foram ameaçados pelos Estados Unidos, transformados em Estado pária. Putin sentiu que tinha carta-branca para destruir a Síria, Erdogan para reconstruir o Império Otomano, a Arábia Saudita para massacrar os iemenitas e decapitar opositores.

Em 2016, Hillary Clinton inscrevia-se na corrente do neoliberalismo adocicado de Blair e considerava os trabalhadores que sofriam com os efeitos de uma globalização desregrada como "deplorables". Biden-Harris prometem romper com essa herança.

Quatro anos depois, perante uma pandemia devastadora, Biden, o centrista, incorporou as aspirações dos movimentos populares, das marchas das mulheres ao Black Lives Matter e de milhares de iniciativas cívicas nacionais e comunitárias. Chamou para a sua campanha o talento e o compromisso social e ético de muitos dos seus líderes e disse-lhes querer ser “o Presidente mais progressista desde Roosevelt.” O que explica ter passado a defender os elementos essenciais do Green New Deal, da redução das emissões de CO2 ao combate às desigualdades sociais.

O Partido Democrata é hoje menos dependente dos “lobos de Wall Street”, mais capaz de combater o racismo e de promover um modelo multicultural, assente na igualdade de direitos e numa laicidade tranquila.

Para aplicar o seu ambicioso programa o Partido Democrata terá também de conquistar a maioria no Senado. Mas, em todo o caso, o impacto da vitória de Biden será enorme.

A derrota de Trump ajudará a desconstruir a narrativa obscurantista, o mundo das mentiras e das teorias conspirativas, enfraquecendo líderes como Bolsonaro ou Orbán.

Com Biden os Estados Unidos voltarão à Organização Mundial de Saúde e ao Acordo de Paris; regressarão também ao acordo de desarmamento nuclear com o Irão, nas bases de 2015, e darão continuidade aos acordos de controlo de armamento com a Rússia.

Quanto à China, Biden, sem confronto nem complacência, deverá optar pela resolução das divergências no quadro multilateral, de forma a prevenir uma guerra (fria ou mortífera).

Será fundamental tirar partido do momento político criado por uma vitória democrata para reformar as organizações multilaterais, tornando-as mais inclusivas e eficazes.

Esperemos que a UE se aproprie do momento - uma nobre ambição para a Presidência portuguesa.

É imperioso aproveitar o regresso dos Estados Unidos para reformar a OMS e lançar, a partir das Nações Unidas, um plano global para vencer a pandemia, superar a recessão e enfrentar a urgência climática.

Outro futuro será, assim, possível.

Sobre Trump, está tudo dito. 

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