Já entrámos no estado de emergência

Em Março, as imagens que nos chegavam da Itália ou da Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os discursos do Governo. A responsabilidade individual conquista-se mais pelo pavor do que pelo civismo.

O Governo precisava de dar um novo “abanão” ao país para fazer prova de que o brutal aumento de novas infecções pelo novo coronavírus está a ser devidamente acompanhado. A solução que encontrou impõe uma receita que combina o apelo cívico ao confinamento com a obrigação do teletrabalho ou a restrição no acesso a restaurantes ou lojas comerciais a 70% dos portugueses. Mas nas entrelinhas do discurso do primeiro-ministro ficou implícita a ideia de que esta solução é apenas mais um degrau na escalada das restrições. A menos que o improvável, o achatamento da curva de infecções, aconteça, o estado de emergência promete ser o próximo passo para a aflição.

Será necessário? A pergunta merece discussão não tanto pela velha polémica sobre a aplicação de medidas lesivas aos nossos direitos e garantias – porque, por muito que António Costa sublinhe que o problema que enfrentamos “não é um problema de polícia”, basta ver o aparato das operações policiais nos dois últimos dias nas ruas e estradas do país para percebermos que é. O que vale a pena então discutir é se as medidas apresentadas vão ser ou não suficientes para que a responsabilidade individual dispense o papel paternal ou policial do Estado.   

Na frente sanitária podemos ter, ao menos, uma breve esperança. O envolvimento das autarquias na aplicação das medidas hoje anunciadas pode garantir uma maior efectividade. O teletrabalho obrigatório reduz a pressão nos locais de trabalho ou nos transportes públicos.

Mas não serão essas as principais causas para o reforço da responsabilidade individual que tanto o Governo como as autoridades sanitárias não se cansam de pedir: é o medo provocado com os alertas de hospitais no limiar da sua capacidade de internamento nas enfermarias ou nos cuidados intensivos. Em Março, as imagens que nos chegavam da Itália ou da Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os discursos do Governo. A responsabilidade individual conquista-se mais pelo pavor do que pelo civismo.

Mas se o medo é um instrumento racional de defesa contra o vírus, é também um factor que paralisa as decisões e ataca a economia. Com as medidas anunciadas pelo Governo regressamos ao confinamento e, por muito que António Costa o tente temperar com idas ao restaurante ou ao teatro, há uma noção de estado de emergência a germinar sem necessidade de um decreto presidencial. 

Mesmo com as medidas menos intrusivas da situação de calamidade, a economia abrandou em Outubro. Os restaurantes e as ruas começaram a esvaziar-se. A covid-19 regressou em força às conversas e começa a influenciar comportamentos. Não há volta a dar: aos poucos estamos a regressar ao princípio do pesadelo.

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