Estatuto de cuidador informal fica isento de atestados médicos até ao final do ano

Ideia é simplificar processo, desde Junho até agora, iniciado por 2559 pessoas e conquistado por 530. Pode ser uma saga, como se vê pelo exemplo de Irene.

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Enric Vives-Rubio / Publico

Até ao final do ano, quem requerer estatuto de cuidador informal não precisa de apresentar um atestado médico a certificar que tem capacidades físicas e psicológicas para cuidar, nem outro associado ao consentimento da pessoa alvo de cuidados. É uma tentativa de simplificar o processo, desde Junho até agora iniciado por 2559 pessoas e conquistado por 530 – 227 nos 30 concelhos com projecto-piloto, 102 com subsídios atribuídos.

A portaria foi publicada no Diário da República desta quarta-feira: “No contexto da pandemia que vivemos, verifica-se a necessidade de dispensar a junção ao processo de documentos que nesta fase são de difícil obtenção”. Até 31 de Dezembro, há possibilidade de adiar a apresentação de documentos que implicam actos médicos. Os serviços têm 30 dias para responder e não 60, como até agora.

Os números, revelados pelo Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, são diminutos face a um universo estimado em 827 mil cuidadores, mais de 200 mil a tempo inteiro. Esmiuçar casos concretos pode ajudar a perceber porquê. O de Irene R., uma dona de casa de 69 anos que cuida do marido, um antigo militar sete anos mais velho, é exemplar.

Uma das filhas, Teresa, é que a convenceu a requerer o estatuto. Oliveira de Azeméis não é um dos 30 concelhos com projectos-piloto, mas isso não impede os cuidadores residentes de verem o seu estatuto reconhecido. A mãe nunca terá direito ao subsídio, uma vez que a família não cumpre as condições de recurso, mas poderá vir a beneficiar de outras medidas, como o apoio psicossocial e o descanso do cuidador.

Logo no princípio de Julho, olhando para a lista de requistos, Teresa deu com um obstáculo: embora o pai necessitasse de supervisão permanente e de ajuda da mãe para actos essenciais, não era titular de complemento por dependência. Havia que pedi-lo à Caixa Geral de Aposentações. Só telefonando encontrou o formulário no site. Uma vez preenchido, remeteu-o com uma declaração do médico psiquiatra.

Ser docente não a livrou da sensação de estar “numa espécie de labirinto burocrático”.“Acho que as pessoas precisam de ajuda para tratar disto”, dizia. O mesmo afirmava a vice-presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais, Maria dos Anjos Catapirra, denunciando “explicações incorrectas por parte dos funcionários da Segurança Social, falta de literacia dos cuidadores nos meios digitais, marcações presenciais que demoram, falta de apoio das autarquias na prestação de informação nos concelhos dos projectos-piloto”.

Desde Junho, mês em que tudo começou, cresce o esforço para chegar aos cuidadores. No portal da Segurança Social, criou-se uma área dedicada que inclui um Guia Prático Em cada um dos 18 centros distritais, um Gabinete de Acolhimento ao Cuidador Informal. A nível nacional, uma linha telefónica exclusiva (300 502 502). Pelo correio, seguiram notificações aos beneficiários titulares de complemento por dependência de 2.º grau e do subsídio por assistência de 3.ª pessoa residentes nos concelhos dos projectos-piloto.

Não fosse a filha, Irene não se teria metido naquilo. “Ela deve achar que estou sobrecarregada”, concede. “Tenho uma quinta, galinhas, patos.” Cuida deles, cuida do marido, e já teve dias melhores. “Também sou doente. Tenho osteoporose. Fui operada ao coração. Tirei um peito.”

Há cinco anos que vê o marido desaparecer, todos os dias um bocadinho. Vai sendo engolido pela demência. No princípio, nem estava a perceber. “Começou a ser muito agressivo e a ‘acartar' as coisas para o lixo”, recorda. O médico não acertou logo com a medicação. “Eu não podia abrir a boca, que ele pregava muito alto.” Não pensou em separar-se. “Tive pena. Se a gente atura quando eles têm saúde, vamos deixá-los quando ficam doentes? Fui aguentando. Ainda foi bastante tempo até o médico acertar.” E lá se acalmou.

Custa-lhe resistir à tentação de fazer por ele. As filhas vão-lhe explicando que isso acelera o processo. “Se calhar, não sei, se calhar sou eu que tenho medo que caia e vou ajudar no banho. Dou-lhe a esponja e espuma e ele esfrega-se.” Todos os dias, saem de casa de braço dado e caminham devagarinho. Estando bom tempo, Irene puxa por ele. “A gente senta-se num muro e está ali à conversa.” Não falam sobre a doença. “O que eu lhe perguntar, ele responde. Se eu não falar, ele não fala. É capaz de andar um dia todo sem falar.”

Continuando às voltas com o requerimento do estatuto, a filha temeu que Irene não conseguisse a declaração médica que atesta a sua capacidades físicas e psicológicas para cuidar do marido. O cancro deixou-a com uma incapacidade de 60%. É um problema de muitos idosos que cuidam de outros idosos. Mas a médica de família conhece a realidade, sabe que Irene cuida do marido. Passou o atestado.

Faltava uma manifestação de consentimento do pai. Falou com ele. Passou-lhe o papel para as mãos. Explicou-lhe o que era aquilo. “Ele assinou.” Pelo sim, pelo não, pediu uma junta médica de avaliação de incapacidade. Foram suspensas no dia 18 de Março, mas o Governo criou um regime excepcional em Julho que deverá funcionar até ao final do ano. Para já, a ausência desse documento não trava o processo de obtenção do estatuto. 

Ao submeter o requerimento online, já no princípio de Outubro, uma última peripécia. O sistema emitiu uma mensagem de erro: entende que o pai não faz parte do agregado da mãe, embora estejam casados há 37 anos. Quando telefonou, informaram-lhe que tinha de tratar daquilo ao balcão. Dias antes do atendimentos presencial, recebeu um telefonema da Segurança Social. Queriam saber o motivo da visita. Mal a ouviram, disseram-lhe que remetesse os papéis por e-mail. “Mandei tudo. Continuo à espera. Vou ter de enviar um email de novo a lembrar. É das coisas mais inglórias que já fiz. Não vou desistir. Se não se fizer os pedidos, parece que era um bando de malucos que andava a pedir o estatuto do cuidador informal.”

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