Elogio fúnebre da regionalização

A inércia de uns e a indigência de outros reduziram a causa da regionalização a um lamentável jogo de máscaras à volta de um defunto ou, quando muito, a uma alma penada.

À memória de Pedro Baptista

Em 1868, no opúsculo Portugal perante a Revolução de Espanha, ainda hoje polémico pelo desassombrado iberismo, Antero de Quental identificava já no Estado centralista uma máquina de triturar vontades e energias. O antídoto para essa doença anímica do corpo político nacional era, para ele, a descentralização em “tantos centros de autoridade local quantos forem os centros naturais da vida nacional, coordenados entre si e estando uns para os outros na mesma relação jurídica” (p. 20). Bem entendido, o contexto histórico era outro, Antero não chamava a isso regionalização mas, na tradição socialista (proudhoniana) e republicana que era a sua, uma federação democrática, solução que ele contrapunha ao artificialismo da “grande nacionalidade compacta” que matava a diversidade e atrofiava a liberdade. Aliás, a convergência entre um ideário regionalista e o federalismo europeu inspirado em Proudhon fez escola na primeira metade do século XX, bem antes da “Europa das regiões” de Delors.

Antero colocava assim o problema da organização territorial do Estado no plano político e das ideias, como Alexandre Herculano fizera para o municipalismo, e não, como hoje tem sido norma, no mero plano administrativo ou à guarda do planeamento territorial, disciplina cujos missais, apesar de bem-intencionados, acabaram por contribuir para despolitizar a causa da regionalização. Mas se as regiões não devem ser meros corpos administrativos, também é uma falácia tê-las por corpos naturais, emanações do solo e do clima, ou fundadas, como teimam alguns, em particularismos mais ou menos coloridos dos quais se ocupava, até há pouco tempo, a etnografia (e que Álvaro Domingues desmistifica com brilho no seu Volta a Portugal). Pelo contrário, as regiões devem ser entendidas como corpos políticos e sociais, nascidos de um acto de vontade, focos intermédios de decisão baseados numa ideia de liberdade e reciprocidade, capazes de consagrar uma solidariedade interterritorial através de mecanismos redistributivos. É nisto que pode enraizar-se uma unidade nacional autêntica em vez de uma unidade artificial, empoleirada em ressentimentos e incompreensões. Trata-se, no fundo, de complementar o contrato social com um contrato territorial.

Desgraçadamente, o nosso país permanece tolhido por um centralismo imoderado, ao arrepio do espírito e da letra da Constituição, não obstante o papel meritório das CCDR, das Áreas Metropolitanas e das CIM. Antero chamava-lhe “atonia” e, décadas antes, Tocqueville tinha-lhe chamado “sonolência administrativa” (ver o meu artigo neste jornal, “Sonolência Administrativa”).

Pelo caminho houve esse desastrado e desastroso referendo de 1998 e a estirpe de demagogos que então se descabelavam pela “unidade nacional” em risco, dizendo n’importe quoi para denegrir a campanha pelo “sim”. Nas décadas seguintes, a regionalização foi passando de causa valorosa a significante vazio, adorno de programas eleitorais e estribilho de comícios. A descendência dos seus detratores entrega-se hoje ao mais indolente populismo, acusando os que não aceitam baixar os braços de maquinarem para a criação de novas sinecuras com que aconchegar clientelas partidárias ou de fomentarem o despesismo. Pouco lhes importa que a vaga regionalista que percorreu a Europa nos anos 60 e 70 tenha tido como principal desígnio a racionalização da despesa pública, por um lado, e uma maior responsabilização dos decisores locais, por outro.

Em 2019 divulgou-se um substancial relatório de uma Comissão Independente da AR que teve direito a duas ou três parangonas de jornal antes de cair no esquecimento. Por cima disso despejou-se um balde de água gélida: a regionalização voltava para o armário para não melindrar o Sr. Presidente da República. Mais recentemente, não coube na “Visão Estratégica” para a década mais que um punhado de referências fugazes à descentralização. António Costa e Silva, de resto, declarou publicamente não encontrar vantagens na regionalização (embora as encontre, por sinal, na criação de duas “macrorregiões” decalcadas nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto…).

No passado dia 13 de Outubro, os representantes do poder local elegeram pela primeira vez os presidentes das CCDR, com candidatos únicos em quatro destes cinco organismos e, por isso, sem o imprescindível confronto prévio de visões e projectos para as respetivas circunscrições regionais. Ouvir em simultâneo alguns autarcas apelidá-la de “farsa” prejudicial à regionalização e outros a denunciá-la como uma “regionalização encapotada”, uma coisa e o seu contrário, é prova da sua inconsequência. Seja como for, um democrata nunca deixará de trocar uma nomeação por uma eleição, mesmo que insuficientemente maturada.

Acrescente-se que não é raro serem os próprios campeões da regionalização (veros ou de circunstância) a prestar um mau serviço à causa. Assim é quando a usam como álibi para desacreditar e obstaculizar qualquer tentativa de descentralização. O pregão que parecer irmanar a classe desses regionalistas utópicos é justamente o de que nenhuma descentralização é boa porque ainda não é a regionalização. O único efeito de tal maximalismo é alimentar a bipolaridade entre uma regionalização adiada sine die e a perpetuação do centralismo realmente existente.

E, todavia, salta aos olhos que o atual modelo falhou. Que as disparidades regionais e intrarregionais pouco ou nada se esbateram nas últimas décadas e que a convergência com os padrões da UE continua a ser uma miragem, com as ilustrativas exceções da Madeira e dos Açores, as duas únicas regiões político-administrativas do país.

Embora duas sondagens recentes apontem para uma vitória modesta do “sim” num hipotético segundo referendo, inescapável por obra da malfadada revisão constitucional de 1997, sabemos que os antagonistas não olharão a meios para sabotá-lo com a desinformação e a calúnia. E não se fazem revisões constitucionais para reverter revisões constitucionais. Entretanto, ninguém procura responder a uma pergunta que se impunha para tomar o pulso à causa: após décadas de políticas regionais supervisionadas pelas CCDR, houve ou não uma interiorização da ideia de região, não já nos seus aspectos folclóricos ou naturalistas mas no plano da consciência cívica e política?

A inércia de uns e a indigência de outros reduziram a causa da regionalização a um lamentável jogo de máscaras à volta de um defunto ou, quando muito, a uma alma penada. Se acreditarmos, com Novalis, que “a morte é metamorfose”, talvez celebrar as exéquias da regionalização e fazer o luto seja agora a única saída de um terreno cuja desminagem se afigura inviável e o requisito para vislumbrar outros caminhos capazes de aliviar o país dessa “coisa falsa, artificiosa e estéril, a centralização” (Antero, p. 25).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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