3. A nova era dos extremos

Este é o mundo que herdámos. Vivemos uma nova era dos extremos. E a cada crise em que mergulhamos descobrimos que a distância entre eles é cada vez maior.

Volto a recuperar o título de uma obra consagrada para abordar alguns dos mais candentes problemas das sociedades atuais. Desta vez recorro ao livro do historiador inglês Eric Hobsbawm, The Age of Extremes: The Short Twentieth Century, 1914-1991 (Londres, 1995). A história deste curto século XX – por contraste com o longo século XIX, iniciado pela revolução francesa e extinto pela I Guerra Mundial – é balizada por Hobsbawm pelo mais destruidor conflito mundial e o desmoronamento do regime soviético.

Duas guerras mundiais entremeadas por uma recessão económica sem equivalente marcaram o quadro de “catástrofe” que foi a primeira metade do século XX. Milhões de baixas militares e civis, destruição massiva de capital fixo, o genocídio das minorias étnicas, a aniquilação da liberdade e dos direitos humanos, mancharam irreversivelmente as páginas mais negras da história da humanidade. A própria ideia de progresso que marcara o desenvolvimento mundial do século XIX era agora remetida para o estatuto de quimera sem qualquer ajustamento à verdadeira natureza humana.

Como chegámos a tal estado? Nacionalismo exacerbado, radicalização ideológica, intolerância social, dogmatismo político, generalização das soluções autoritárias e antidemocráticas. A “era dos extremos” iniciara-se nas ideias, nos movimentos sociais e nas políticas.

A segunda fase foi de reconstrução e de sustentado crescimento económico. No campo político a polarização deu lugar ao centrismo e, durante quase três décadas, o Mundo voltou a beneficiar da prosperidade e a acreditar no progresso ilimitado. Mas, como decorrência do balanço entre vencedores e vencidos da II Guerra Mundial, o Mundo bipolarizou-se, a “guerra fria” alimentou uma “paz fria” nos cenários onde a guerra havia reduzido tudo a escombros.

A crise de 1973-75 foi o primeiro marco de passagem para uma nova fase que Hobsbawm designa por “the landslide” e que se traduz na desaceleração dos ritmos de crescimento económico, na sucessão de choques assimétricos à escala global e pelo fim do mundo bipolar, repartido entre capitalismo e socialismo. O que se segue e prolonga até aos nossos dias é a fragmentação do campo político e ideológico, minado por movimentos desgarrados e ideologias de nicho, populismos e demagogia, tensões autoritárias e de reação nacionalista, à esquerda e à direita, pelo radicalismo dos direitos e o fundamentalismo das crenças. A liberdade, a democracia e a universalidade dos direitos humanos perdem terreno.

Este é o mundo que herdámos. Vivemos uma nova era dos extremos. E a cada crise em que mergulhamos descobrimos que a distância entre eles é cada vez maior.

É difícil entender como na primeira nação da história da democracia corremos o risco de ver reconduzido um populista irresponsável como Donald Trump. Que diariamente sejamos expostos aos milhões de deserdados do progresso e às vítimas da violência institucionalizada. Que uma horda de radicalizados consiga subtrair à União Europeia – o mais bem-sucedido projeto de paz e de desenvolvimento humano – um dos seus pilares fundamentais, o Reino Unido. Que o fundamentalismo teológico espalhe o terror e a destruição um pouco por todo o lado. Que as soluções autoritárias e antidemocráticas se assumam com naturalidade como uma escolha racional a respeitar resignadamente.

Não nos podemos deixar subjugar pelo dilema entre a ordem autoritária e a desordem complacente. A radicalização das opções não é mais que o produto de os extremos se alimentarem mutuamente. O mundo a preto e branco não pode ser uma ambição, é uma tormenta.

Por isso entendo que é urgente reconstruir uma cultura política que assente na moderação e no compromisso. Não se confunda, entretanto, moderação com resignação e abdicação de valores, princípios e convicções. Pelo contrário, exige o reforço dos valores e princípios fundadores das democracias liberais contemporâneas, na linha de Montesquieu e Tocqueville, entre os clássicos, de Raymond Aron a Amartya Sen, mas também da ação e do exemplo de Olof Palme, Helmut Schmidt, Helmut Kohl ou mesmo Angela Merkel.

Durante as últimas décadas, a moderação política que havia subtraído a Europa ao espectro da guerra foi substituída pelo primado da tecnocracia, especialmente inspirada pela economia pós-keynesiana, nomeadamente do neoliberalismo inspirado na “escola de Chicago”, pelo unanimismo das soluções únicas e pela desideologização da ação política. Atualmente está a ser combatida pelo radicalismo e pelo extremismo. Por isso, justifica-se a ideia defendida neste jornal de que é preciso ter coragem para se ser moderado.

Combater os extremismos de nicho pressupõe a mobilização de valores, princípios, visões do mundo e matrizes culturais que configuram ideologias. Há uma diferença entre compromisso e consenso, entre inconformismo e radicalismo, entre moderação e neutralismo. O debate ideológico é clarificador desde que não se torne maniqueísta e que não se deixe subjugar à suposta neutralidade tecnocrática.

As redes sociais representam hoje um excelente observatório dos processos de radicalização política: a ignorância, o simplismo argumentativo, o insulto, o primitivismo emocional e a demagogia ganham, dia a dia, um terreno cada vez mais minado. Numa parte significativa das expressões encontramos os estilos próprios de algo que fica entre a seita, pela facilidade que se transformam convicções em crenças, e a “massa associativa” manipulada pelas claques mais ruidosas.

Mais do que realidade, é a antevisão de cenários futuros e da emergência de uma nova era dos extremos que as próximas décadas poderão ou não confirmar.

Terceiro de uma série de dez textos de David Justino que publicaremos semanalmente, sempre às quintas-feiras, sobre os desafios que enfrentamos em várias áreas, em Portugal e no Mundo. Próximo artigo: “O fetichismo da tecnologia”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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