Eutanásia agora? O cúmulo do cinismo

Se estamos todos concentrados em salvar vidas e que essas vidas não são inúteis, por mais que a idade já vá avançada e as doenças surjam, não faz sentido que ao mesmo tempo legislemos para dar a estes mesmos cidadãos, neste momento de sofrimento, a possibilidade de acabar com a vida, julgando que assim resolvem o problema dos seus.

Desde Março vivemos diariamente de forma mórbida e doentia, diria eu, dependentes de um registo diário de infectados e óbitos da covid-19. Sabemos pouco mais sobre a realidade, porque as autoridades só nos querem revelar os números do susto e não, como sempre, as causas, as razões e as lições que os números, devidamente tratados, nos mostram.

E o que sabemos afinal, com os dados que nos são facultados? Que a maior parte dos óbitos se registam em pessoas maiores de 70 anos e normalmente que já têm outras doenças associadas. Correctamente, os Estados fazem de tudo para poupar estas vidas, tendo até sacrificado a economia em nome do primado da vida, fechando os olhos a idades e maleitas associadas.

Mas a verdade é que se numa primeira fase Portugal ficou conhecido por um suposto milagre de contenção da pandemia, ao mesmo tempo que na Europa o cenário era dramático, infelizmente, nesta segunda vaga, a fama que vamos ganhar é a de cínicos e hipócritas, por aprovarmos uma lei da eutanásia, ao mesmo tempo que nos sacrificamos todos para salvar as vidas daqueles que os autores da lei defendem que podem ser dispensadas.

Eis que no meio da fase mais crítica da pandemia e com centenas de idosos fragilizados e deprimidos com a situação e com o seu futuro, muitos deles há meses sem poderem ter contacto com a família, o Parlamento decide avançar com o processo da eutanásia.

Sou contra a eutanásia, porque acho que a vida humana tem sentido e valor em qualquer circunstância e que o tempo de vida que nos é dado é necessário para cumprir a nossa missão. A minha opinião sobre o tema pode até ser discutível, admito-o, só que em democracia, o debate de ideias e opções deve ser feito de forma leal e transparente e não de forma atabalhoada, apressada e às escondidas das pessoas, aproveitando uma época em que todas as atenções estão focadas noutra emergência.

Muito já se disse sobre a forma como este tema foi decidido no Parlamento depois de uma campanha eleitoral em que não se falou de eutanásia. Eu própria fui candidata nessas eleições e tive que forçar a nota para que o tema fosse falado num dos vários debates que tive.

A verdade é que em cima da mesa, neste momento, estão uma lei em elaboração e uma petição pública com 95.287 assinaturas de cidadãos a reclamar um referendo sobre o tema.

Face às actuais circunstâncias, o que é que era razoável e leal com os portugueses? Deixar que estas duas questões fossem resolvidas, depois da situação de emergência por que estamos a passar.

Mas o objectivo dos promotores da lei é mesmo levar a sua avante custe o que custar, doa a quem doer. Isso da opinião pública e da democracia é coisa de somenos. Vai daí, agendaram para estes dias as duas decisões. Claro que um dos argumentos que vingará é o de que num tempo destes, falar-se em referendo é um disparate, os deputados têm legitimidade para decidir.

Aos que não estão de acordo e percebem a tramóia, resta-nos esta tribuna da opinião para desmascarar o cinismo e a deslealdade. Talvez quem nos leia perceba que, se estamos todos concentrados em salvar vidas e que essas vidas não são inúteis, por mais que a idade já vá avançada e as doenças surjam, não faz sentido que ao mesmo tempo legislemos para dar a estes mesmos cidadãos, neste momento de sofrimento, a possibilidade de acabar com a vida, julgando que assim resolvem o problema dos seus.

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