Cinema, uma questão de soberania

Uma nova temporada da série erótica 365 Dias da Netflix, filmada em Portugal, deve contar como financiamento ao cinema português?

Uma nova temporada da série erótica 365 Dias da Netflix, filmada em Portugal, com actores e técnicos portugueses, deve contar como financiamento ao cinema português? Assim poderá acontecer, se a lei que transpõe para a legislação portuguesa a directiva europeia que regulamenta as plataformas de vídeo a pedido for aprovada de acordo com o defendido por Nuno Artur Silva, secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media.

Para o Ministério da Cultura, operadores como a Netflix poderão optar por reverter o montante que estarão obrigados a pagar numa taxa, como já fazem as televisões, para financiar a produção do cinema nacional, ou fazer um “investimento directo em produção europeia em língua portuguesa”.

A ideia poderia certamente ser subscrita pela Iniciativa Liberal, de tal forma entrega a quem paga o imposto a possibilidade de gastar o dinheiro em causa própria. Mas é de um Governo socialista que vem, ao arrepio do que acontece já, por exemplo, na Alemanha ou na França, onde estas plataformas são obrigadas a contribuir directamente para o orçamento dos organismos estatais encarregados de financiar o cinema. E isto é tão mais importante quanto estas novas plataformas se tornam dominantes e obscurecem as receitas que provinham dos tradicionais financiadores do sistema.

Até pode haver alguma bondade nos argumentos do secretário de Estado, quando enaltece a possibilidade de ter um gigante “empenhado em agarrar em conteúdo nacional e levá-lo nas suas plataformas para todo o mundo”. Mas porquê abdicar de qualquer controlo, por que não apenas reservar uma percentagem do total para investimento directo em produção e deixar o resto entregue aos organismos que podem ser escrutinados pelos cidadãos?

Porque não é só uma opção ideológica ou até de gosto que está aqui em causa: é, antes do mais, uma questão de soberania. Aquilo que não é crível é que venham a ser plataformas internacionais, como a Netflix ou a HBO, a concretizar o que deveriam ser prioridades para quem é escolhido, em nome dos portugueses, para defender a língua, a diversidade e a especificidade do cinema português.

Mas deve mesmo haver um problema de entendimento deste conceito, quando se acha aceitável, como sucedeu recentemente, que a apresentação da metodologia do plano estratégico para o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), a ser elaborado por uma consultora inglesa, possa ser feita em inglês. O problema não é a origem da empresa, com vasta experiência na área, o problema é mesmo esta total falta de noção. Fez muito bem quem saiu da sala, como faz bem quem protesta contra o caminho que leva o financiamento do cinema português.

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