O dever da integridade

Obedecemos à arte, não obedecemos aos governos, nem a este nem a nenhum outro. E, assim sendo, não nos digam que temos que agradar às plataformas americanas que uniformizam o mundo. Há lugar para todos, mas o lugar deles não é o nosso.

Escrevo esta breve nota dando conta da minha indignação, na que me sinto acompanhada pelas centenas de profissionais do cinema que assinam esta semana uma carta aberta dirigida aos órgãos de soberania de Portugal.

Questão: O Governo entende que as plataformas dos serviços de vídeo a pedido que agora operam na Europa, como a Netflix, HBO e a Amazon, devem ficar isentas do pagamento de uma taxa por operarem em Portugal, e que, em vez disso, a nossa comunidade do cinema e do audiovisual deveria saber seduzir estas plataformas para que invistam nos nossos projectos. E atenção, segundo o Governo, esse investimento não tem que ser feito em projectos exclusivamente portugueses, basta que seja feito em projectos europeus parcialmente feitos em Portugal. Nossos projectos?

Em França, por exemplo, um país com infinitamente mais dinheiro do que Portugal para o seu cinema, e que, aliás, sabendo da importância artística do cinema português, muito tem contribuído financeiramente para grande parte do nosso cinema, lá, essas enormes empresas são obrigadas às duas coisas, à taxa e à contribuição para projectos franceses.

As fontes de financiamento do cinema português estão em queda, muito também por causa da crescente influência dessas grandes plataformas. As nossas fontes têm sido as taxas sobre os anunciantes de publicidade nas televisões e sobre os canais por cabo, tudo isso em queda.

É incompreensível que o Governo não perceba que tem que taxar essas empresas gigantescas, e justamente agora que tanta falta nos fazem novas fontes de financiamento. Mas não percebe? É uma opção política, taxa ou não taxa.

A opção que foi oferecida a essas plataformas pode perverter a soberania, e a independência, do cinema português. Além de que, óbvio, abre a porta para que não venham a pagar nem uma coisa nem outra. Ou para que paguem, aqui e ali, a algumas produtoras que lhes facilitem serviços.

Vergonha alheia ou tristeza: O Governo entendeu chamar uma empresa do Reino Unido para vir desenhar uma estratégia para o cinema português. Em plena pandemia, o ICA secretariou durante meses, à borla, um concurso da Netflix. Que país do mundo ofereceria os seus serviços, os seus funcionários, à borla à Netflix?

Indignação: O secretário de Estado do Cinema diz que vamos entrar numa fase de ouro do cinema português porque nunca estivemos tão perto de entidades com tanto poder mundial como estas de que falamos. Diz que temos que saber ter uma mente aberta para apresentarmos projectos capazes de seduzir. Enfim…

Digam a um pintor para trocar o verde por amarelo, digam a um poeta para trocar um “de” por um “que”. Digam a um escultor que é melhor não misturar ferro com vidro. Digam a um escritor que no fim não se percebe porque é que o cão não morre. Etc., etc., etc..

Dêem essas ordens, ou, admitindo que querem ser mais brandos, essas sugestões. Façam-nos bater à porta das Netflixs e Amazons desta vida que nos hão-de compensar a obediência com a honra de ter um filme que diz no início: Netflix ou Amazon apresentam.

Queridos governantes, nem sei bem como vos explicar isto, mas saibam que sempre que falarem assim com as e os artistas ficarão a falar sozinhos.

Todos nós, para sermos artistas, temos que acima de tudo ter respeito pela nossa arte. Obedecemos à arte, não obedecemos aos governos, nem a este nem a nenhum outro. E, assim sendo, não nos digam que temos que agradar às plataformas americanas que uniformizam o mundo. Há lugar para todos, mas o lugar deles não é o nosso.

Eu sou uma cineasta portuguesa, e tenho orgulho nisso. Se essas plataformas quiserem investir nos nossos filmes, pois que venha esse apoio que receberemos felizes. Mas que venha para os nossos filmes. Essas plataformas, para poderem operar cá, têm que ser obrigadas a pagar taxas como em qualquer país com dignidade e respeito pelas suas artes e pelos seus artistas. Não é admissível que o nosso Governo nos diga que temos que saber apresentar-lhes “ideias vencedoras”, palavras do secretário de Estado do Cinema.

Não se trata de demitir este ou aquela membro do Governo, trata-se de saber se o Governo concebe ou não que o cinema seja uma arte. Se o Governo quer ou não preservar a especificidade do cinema português, e que, caso não considere, nem queira, que tenha a coragem de o dizer claramente.

A nós, artistas, cabe-nos o dever da integridade, porque no dia em que a perdermos, perdemos objectivamente todos os direitos.

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