O nosso futuro será jogar

Não sabemos como será o futuro, mas podemos especular. O futuro pode ser uma maravilhosa utopia, realizável, em que não teremos de trabalhar. Nessa realidade utópica resta-nos jogar, que no fundo será o mesmo que fazer um trabalho voluntário menos eficiente.

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Podia começar este texto por falar em utopias marxistas, de como o futuro será aquele lugar maravilhoso onde cada um só irá trabalhar no que desejar, sem preocupações com a acumulação de capital. Tanto podia que comecei mesmo, isto para activar a vossa imaginação, através da polarização, quer seja em reacções de repulsa ou de concordância. Esta provocação inicial é comum nos jogos de marketing, embora não sejam jogos de verdade, pelo menos não são jogos como os que vou falar de seguida.

Mas afinal o que é um jogo? Existem imensas definições. Fiquemos por aquilo que nos diz Bernard Suits, que foi alguém que gastou o seu precioso tempo a filosofar sobre o assunto, em vez de o ter usado para jogar. O nosso filósofo diz-nos que os jogos são aquelas actividades que fazemos de forma voluntária, porque simplesmente queremos, usando de meios menos eficientes do que usaríamos fora do contexto de jogo para atingir um determinado objectivo.

Esta definição pode parecer muito abstracta, tanto como um jogo de xadrez. Mas se pensarmos no próprio xadrez os exemplos ganham materialidade. Podíamos ignorar as regras e fazer um xeque-mate logo na primeira jogada movendo todas as peças que nos interessarem. Se pensarmos no desporto com jogos há ainda mais exemplos. Podíamos levar bolas para o campo num camião e descarregar directamente na baliza do adversário. Ou seja, podíamos usar outros meios mais eficientes para ganhar, mas estaríamos a violar as regras do jogo, que são sempre construções operativas artificiais e que só respeitamos porque assim acordamos previamente. Optamos, voluntariamente, em jogar um determinado jogo caracterizado por determinadas regras.

Se alargarmos aqui o nosso foco e considerarmos agora também as actividades que fazemos como passatempo, podemos ver como são parecidas com os jogos. Quando alguém decide fazer com as suas próprias mãos algo artesanal tenderá a fazer essa mesma coisa de forma pouco eficiente, por vezes demorando mais tempo e gerando algo de qualidade inferior ao que poderia ser comprado. Tempo é dinheiro, mas qualidade também. Assim, ao adoptar esta atitude associada à dedicação a passatempos, estamos a jogar um jogo, usando meios menos eficientes para cumprir um determinado objectivo, só porque gostamos de fazer essa actividade. Podemos estar a jogar contra nós próprios e o desafio seja apenas conseguir fazer ou melhorar.

Não sabemos como será o futuro, mas podemos especular. O futuro pode ser uma maravilhosa utopia, realizável, em que não teremos de trabalhar. As máquinas, as inteligências artificiais, as melhorias produtivas, a equitativa distribuição de riqueza e os rendimentos universais vão libertar-nos do trabalho. Então depois ficaremos sem nada para fazer. Nessa realidade utópica resta-nos jogar, que no fundo será o mesmo que fazer um trabalho voluntário menos eficiente.

Mas a utopia pode ser distorcida de modo a emergir uma distopia. Como sabemos que os jogos nos fascinam, eles poderão ser usados simplesmente para nos fazer trabalhar ainda mais, em coisas que supostamente não gostávamos, para acumular ainda mais capital que não precisamos. Podemos entrar num mundo de manipulações jogáveis invisíveis. Os usos da ludificação no trabalho trazem alguns vislumbres disso. Se pensarmos nos desportos de massas, vemos também como podem manipular comportamentos, mesmo sem que os indivíduos os joguem.

Seja como for, muito provavelmente, a humanidade vai passar o seu futuro a jogar, quer sejam os indivíduos a comandarem o jogo ou a serem comandados por outros poderes que se alimentam na nossa necessidade pela procura de novas experiências. O poder dos jogos ainda está aquém de ser revelado, independente do formato do jogo, embora a humanidade jogue desde que se conhece como tal.

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