O Natal pelo Zoom

Apesar da distância, e por causa da distância, nunca falhámos um Natal em casa. Este ano, no entanto, as nuvens acumulam-se tenebrosamente no horizonte.

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As couves-de-bruxelas já estão cozidas, devidamente temperadas com alho para acompanhar o assado. O peru, recheado a puré de castanha, está há duas horas no forno e a golpes cirúrgicos de faca lá vamos descortinando se a assadura se aproxima do fim. Ou não. Nunca fizemos peru. Por razões óbvias, não queríamos fazer peru, mas fizemos. Faremos.

As batatas assadas? As batatas assadas não podiam faltar, afogadas em gravy, o tradicional molho britânico, um veneno intestinal capaz de acordar um morto, a receita ideal para as mais longas noites de Inverno. Quanto às sobremesas, só mesmo os ingleses para terem como “doce” uma empada, a mince pie, uma anedota de carne misturada com frutos secos e canela, uma iguaria nos antípodas galácticos das rabanadas e do tronco de Natal. Mas é o que temos. E assim também temos o tradicional Christmas pudding, um bolo de frutas cristalizadas, o mais próximo do bolo-rei português, mas ao contrário e do avesso. Não tem nada a ver.

Já devem ter percebido por esta altura que não estamos em casa, de volta a casa, depois de quatro meses de chuva, frio e noite no norte da Europa. Pois não, não estamos em casa, mas em Inglaterra, na véspera de Natal e prestes a sentarmo-nos à mesa. O computador já deu o alerta: “a sua reunião de Zoom vai começar em 15 minutos”. E como o Zoom tem tempo limitado, neste caso uma hora, corremos a colocar os pratos na mesa.

Já estão todos online! Entre Lisboa e Santarém, duas janelas abrem de par em par no computador. Do lado de lá, toda a saudade dos cabelos brancos dos nossos pais, o teu irmão, a minha irmã e a minha sobrinha, os cães, o bacalhau nas mesas, as azevias, as fatias douradas, a enxovalhada da minha mãe, a minha mãe, a tua mãe, as mãos no vidro frio do ecrã, ainda incrédulas da distância, do castigo, do nó para sempre por engolir entalado bem a meio da garganta.

Sejamos francos, ainda não é Natal. Estamos em Outubro e o cenário acima descrito, apesar de próximo da realidade, nunca aconteceu. Apesar da distância, e por causa da distância, nunca falhámos um Natal em casa. Este ano, no entanto, as nuvens acumulam-se tenebrosamente no horizonte. Se fosse hoje, não poderíamos ir, dada a necessidade de quarentena à volta, a qual coincide com o inevitável regresso ao trabalho. Mas como ainda não é Dezembro, mantemos a esperança e o coração acesos, para não dizer em chamas, para aquecer a alma e a esperança é mesmo a última a morrer.

A esperança ou a teimosia. E por sermos teimosos vamos trocar os 15 vouchers de avião do corrente ano e adquirir duas passagens para o Natal. Isto na premissa de podermos alterar a data, caso a presente situação se mantenha. Se não for possível, compramos dois bilhetes à mesma, pagando um pouco mais para alterar a data caso não possamos voar. E quando chegarmos a Dezembro, logo se vê.

Até lá, mantemos a luz acesa ao fundo do túnel. Mantemos a luz acesa para que os governos aumentem a capacidade de testagem, para que os testes sejam obrigatórios nos aeroportos, portos e fronteiras, pelo uso universal de máscara, pela proliferação de transportes públicos de modo a evitar aglomerações desnecessárias, pelo investimento desenfreado em habitações condignas para que a pobreza não seja o foco incessante de doenças que sempre foi, e será, pelo bom senso entre todas as faixas etárias, as saídas à noite podem esperar, os copos na rua podem esperar, as festas podem esperar, o Natal não pode esperar.

Não é pedir muito, apenas um pouco de tempo com quem mais nos quer antes que seja tarde demais.

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