Um nó na 25.ª hora

Este não será o primeiro Orçamento do Estado negociado até à 25.ª hora, mas, pelas posições do Governo, o nó ainda está longe de ser desfeito.

Deixar tudo para a última hora é algo que não se ensina, apesar de ser largamente praticado. Eventualmente será um hábito social, não creio que seja genético ou um problema da água. Não sei qual a origem ou a paternidade, se há culpados ou pecadores, mas é verdade que somos praticantes fervorosos dessa religião.

Veja-se o processo de construção do Orçamento do Estado para 2021, a conclusão é a do cumprimento dessa malfadada praxe. Desde julho que se anda a discutir o orçamento que se avizinha. Finda a discussão sobre a resposta de emergência prevista no Orçamento Suplementar, a atenção virou-se para a preparação dos compromissos para 2021. Já não tenho dedos das mãos para contar o número de reuniões que tivemos desde essa altura. Estamos há meses com as propostas em cima da mesa, sem interrupções ou hesitações, sem suspender negociações para as retomar em cima da meta, horas e horas de discussão sobre as prioridades fundamentais. E, no entanto, ainda há coisas por fechar.

Enquanto escrevo este texto decorre a reunião do Conselho de Ministros que irá decidir sobre o conteúdo do Orçamento do Estado para 2021. A proposta que o Governo entregará à Assembleia da República na próxima segunda ficará decidida, pelo menos nos seus traços mais gerais, na conclusão desse encontro ministerial. Falta saber se estará à altura das necessidades do país. As indefinições continuam e as declarações públicas não dissiparam as dúvidas.

O Governo fez anúncios genéricos de medidas que promete fazer constar do documento orçamental. Fica o registo para memória futura, mas sabemos como os detalhes são importantes. É o documento orçamental que tirará quaisquer dúvidas sobre as intenções e o alcance das propostas. Não darei grande novidade se mostrar algumas reservas sobre os resultados (até agora) apresentados em mesa negocial.

Da parte do Bloco de Esquerda não há grandes segredos, nem trunfos escondidos na manga. Desde julho estão identificadas as prioridades na resposta à brutal crise que enfrentamos: preservar o emprego para defender as pessoas e a economia da crise, assegurar que o SNS estará cá para cuidar de nós, proteger as pessoas da pobreza para não deixarmos ninguém para trás, prevenir que o sistema financeiro não volte a viver às custas do país. O país sabe as nossas propostas, o Governo conhece o que defendemos. No entanto, tanto tempo de negociação depois, chegamos à reta final ainda com as escolhas fundamentais por fazer. Intransigência é palavra que resume esta negociação – pela parte do Governo, claro está.

Vejamos as propostas no concreto para que as conclusões possam ser tiradas livremente nas diversas áreas. A proteção social foi levada à mesa negocial na forma de uma nova prestação social a criar, mas a intransigência do Governo mantém as mesmas regras de condição de recursos que perpetuam a pobreza infantil. A salvaguarda do emprego esbarra desde logo numa cada vez mais esvaziada penalização de despedimentos, as mudanças estruturais na lei laboral são rejeitadas pela raiz e até na atualização do salário mínimo nacional a conversa começa por um recuo perante as promessas feitas. Na saúde, estamos longe de garantir sequer o reforço do número líquido de profissionais que tinha sido prometido no Orçamento do Estado para 2020 e ainda mais de o cumprir em 2021 – e pelo meio ainda temos a segunda vaga da pandemia. No que toca à proteção dos profissionais, o respeito por carreiras dignas, em particular para os Técnicos Auxiliares de Saúde, é tema tabu. Quanto ao Novo Banco, apesar de hoje não haver quem consiga negar que tem uma gestão feita à medida da absorção máxima dos dinheiros públicos, o Governo continua a garantir que a Lone Star mantém os seus rendimentos intocados.

Este não será o primeiro Orçamento do Estado negociado até à 25.ª hora, mas, pelas posições do Governo, o nó ainda está longe de ser desfeito. E, se não precisávamos de ter chegado a este ponto, o Governo não demonstrou vontade diferente. Mudará?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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