Se Trump está bem, por que está a receber dois tratamentos experimentais? Situação é “absolutamente contraditória”, diz virologista

O Presidente norte-americano está a ser tratado com uma terapêutica especial de anticorpos contra o novo coronavírus, estando também a tomar remdesivir. Virologista afirma que se Trump apenas tem sintomas leves “então a terapia não faz sentido”.

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Equipa médica garante que Donald Trump está bem de saúde Sarah Silbiger/EPA

A equipa médica de Donald Trump e a Casa Branca garantem que o Presidente norte-americano, que foi hospitalizado depois de ter sido infectado com o novo coronavírus, está “muito bem” de saúde, apresentando apenas sintomas leves, sem ventilador e sem febre. Na manhã deste sábado, Trump terá mesmo chegado a dizer que está pronto para sair do hospital. Mas as mesmas fontes adiantaram que o chefe de Estado está a receber uma terapêutica especial de anticorpos contra o novo coronavírus, estando também a tomar remdesivir — o que, segundo Celso Cunha, virologista e professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT-NOVA), “não faz sentido”.

“O estado de saúde do Presidente norte-americano, como o de qualquer outro Presidente, é um segredo de Estado e aquilo que é veiculado pelos seus porta-vozes ou pelos médicos dele é informação oficial que corresponde àquilo que acham que é necessário e conveniente divulgar e que pode corresponder, em maior ou menor grau, à verdade dos factos”, afirma Celso Cunha.

O especialista lembra que, de acordo com a informação divulgada pelos canais oficiais da Casa Branca, Trump apresenta apenas sintomas leves, tendo sido transportado para o hospital apenas por precaução excessiva. Porém, ao mesmo tempo, foi revelado que o Presidente norte-americano “está a tomar remdesivir e um cocktail experimental, que foi testado em algumas dezenas de doentes por uma empresa norte-americana”, a Regeneron Pharmaceuticals — levantando-se já, à partida, algumas questões do ponto de vista ético. E é algo que, segundo o especialista, poderá significar que “o estado de saúde do Presidente não é assim tão benigno e não são tão leves os sintomas como aqueles que são propagados”.

Na sua opinião, “não se justifica” o tratamento que a Casa Branca e os médicos garantem que Trump está a receber. “Em qualquer doente ‘normal’ que seja internado por precaução excessiva num hospital, apenas por ter sintomas como um bocadinho de febre, não faz sentido estar a dar remdesivir — que nós sabemos que não reduz a taxa de mortalidade, apenas reduz os dias de internamento — e depois estar a dar um cocktail experimental cuja eficácia e segurança não estão definitivamente comprovadas”, afirma Celso Cunha.

O virologista admite dois cenários: “Um tratamento experimental pode dar-se a qualquer doente por compaixão, quando não há mais nada a fazer — e ou se experimenta o tratamento ou o doente vai morrer —, ou por uma questão de propaganda da empresa que produz o dito cocktail de anticorpos sintéticos capazes de neutralizar o vírus”.

“Estamos perante uma situação que, em termos clínicos e em termos científicos, é absolutamente contraditória, daí que não seja possível fazer uma avaliação do estado de saúde real do Presidente norte-americano nem sequer sobre o tipo de tratamento que ele está a receber”, destaca.

O que é o cocktail de anticorpos que Trump está a receber?

Em relação à terapêutica especial de anticorpos contra o novo coronavírus, Celso Cunha explica que não sabe “exactamente o que é que esta empresa está a produzir”. “Mas posso dizer que, em termos abstractos, este tipo de tratamento baseia-se na produção de anticorpos em laboratório, que são desenvolvidos especificamente para se ligarem a determinada proteína do vírus. O mais provável é que sejam anticorpos que se liguem às proteínas de superfície do vírus e que o impeçam de entrar dentro das células e de se multiplicar”, acrescenta.

O especialista refere que esta terapia corresponde “quase a um upgrade” da utilização de soro de doentes convalescentes. “Nos doentes convalescentes há uma quantidade de anticorpos significativa capaz de neutralizar o vírus. Ou seja, são pessoas que foram infectadas, sobreviveram e que conseguiram lutar contra esse vírus com sucesso. O soro dessas pessoas convalescentes depois pode ser administrado a pessoas doentes de modo a aumentar a concentração de anticorpos capazes de neutralizar o vírus e, muitas vezes, isso tem sucesso”, afirma, acrescentando que este tratamento foi considerado promissor depois de “alguns ensaios que foram feitos há poucos meses atrás, nomeadamente na China” e pela própria Organização Mundial da Saúde.

No caso de Trump, “em vez de ser o soro desses doentes, estão a produzir em laboratórios esses anticorpos sinteticamente”, que são “desenhados de tal maneira que se vão ligar com bastante afinidade à proteína do vírus, impedindo-a de se ligar ao receptor”. “Portanto, o vírus não vai entrar dentro da célula, vai ficar na corrente sanguínea e vai ser depois reconhecido pelas outras células do sistema imunitário e vai ser destruído”, explica Celso Cunha, admitindo tratar-se de “uma boa ideia porque os efeitos secundários deste tipo de anticorpos são muito baixos ou praticamente nulos”. No entanto, esta “não é uma terapia que esteja neste momento aprovada”, o que leva o virologista a concluir que “se estiver a ser administrada é porque os médicos acharam que não havia outra alternativa”.

“Do meu ponto de vista, nada disto que está a ser veiculado faz nenhum sentido”, sublinha Celso Cunha. “Das duas uma: se o estado de saúde que está a ser veiculado sobre ele é verdadeiro então a terapia não faz sentido; por outro lado, se a terapia faz sentido então o estado de saúde dele não é aquele que estão a dizer.”

Estado de saúde de Trump é “preocupante”?

Neste sábado, depois de a equipa médica garantir que o Presidente dos EUA está “muito bem”, o chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, revelou, citado pela agência Associated Press, que Trump passou por um período muito preocupante na sexta-feira e que as próximas 48 horas serão críticas em termos de cuidados.

O anúncio surgiu depois de ter sido revelado por uma fonte anónima (com alegado conhecimento sobre a situação) que Trump recebeu oxigénio suplementar na sexta-feira de manhã na Casa Branca, antes de ser transportado para o Hospital Walter Reed. 

A mesma fonte notou que, embora os sintomas que Trump apresentava tenham melhorado desde que foi hospitalizado, o Presidente norte-americano poderá só vir a ter alta médica daqui a vários dias.

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