Medidas especiais de contratação pública: um apelo ao bom senso

O novo regime proposto pelo Governo cria condições objetivas para um assalto sem precedentes aos fundos públicos.

O Governo prepara-se para fazer aprovar na Assembleia da República, com o aparente bene­plácito da oposição, ao que parece narconatizada pela pandemia, um regime legal de extrema gravidade.

Ao longo da pandemia, têm-se multiplicado os diplomas legais que parecem ter sido elaborados de cabeça perdida, sem ponderação e sentido das proporções. Mas a gravidade do regime constante da Proposta de Lei n.º 41/XIV, que está pen­dente de aprovação na Assembleia da República e pode ser consultada no respetivo sítio da Internet, ultrapassa todos os limites.

A referida Proposta de Lei versa sobre medidas especiais a adotar em matéria de contratação pública — nada mais, nada menos, do que o domínio do exercício de poderes públicos em que todos os estudos evi­den­ciam que são maiores os riscos (e os casos) de corrupção, envolvendo favorecimento de agentes pú­blicos ou financiamento ilícito de partidos por parte dos agentes econó­micos interessados em contratar com o Estado e com as autarquias locais.

Ora, num contexto em que todos nós vemos desfilar, perante os nossos olhos in­cré­dulos, acusações de corrupção que afectam todos os sectores da vida social, custa a acreditar que o Governo se proponha aprovar um regime de “medidas espe­ciais de contratação pública” em que, em nome de uma putativa urgência na utili­za­ção dos fun­dos que aí vêm, se faz tábua rasa dos mais elementares prin­cí­pios de racionalidade e transparência na utilização de recursos públicos.

Com efeito, as referidas “medidas especiais” estabelecem um regime de excepção a adoptar em relação a todos os grandes contratos públicos que, até 2022, vão ser ce­le­brados pelo Estado e pelas autarquias locais para o relançamento da economia em matéria de projetos cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentra­li­za­ção, de tecnologias de informação e conhecimento, de execução do Programa de Esta­bi­li­­zação Económica e Social, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais e de bens agroalimentares.

E o que, em relação a todos estes contratos, se estabelece é que eles poderão ser ce­le­brados sem realização de concursos até valores altíssimos, corres­pon­dentes aos valores dos limiares das Diretivas Europeias, e sem a imposição de limites quanto à cele­bra­ção de su­cessivos contratos com as mesmas entidades. Não é, assim, ne­ces­sário jus­ti­fi­car a dispensa de concurso em razão da urgência, que a lei presume em conformidade com as re­co­­men­dações do Tribunal de Contas –​ e o Có­digo dos Contratos Públi­cos exige para os contratos de maior valor. E, cereja no topo do bolo, o universo dos contratos abrangidos nem sequer está fechado, pois pode ser alargado por des­pa­cho ministerial (!) a quaisquer contratos, desde que cada ministro, na sua área de intervenção, considere que eles visam dar cumprimento ao Programa de Estabilização Econó­mica e Social aprovado pelo Governo.

Este regime faz lembrar o regime do Decreto-Lei n.º 34/2009, de 6 de fevereiro, de tris­te memória, que estabeleceu um regime semelhante para di­na­mizar a eco­nomia nos domínios da modernização do parque escolar, ener­gias reno­váveis, eficiência ener­­gética e redes de transporte de energia, modernização da infra-estrutura tec­no­ló­gica e reabilitação urbana — regime que esteve na origem, entre outros, de contratos faraó­­ni­cos que ainda hoje são notícia, celebrados pela empresa pública Par­que Es­co­lar. Ora, o que a presente Proposta de Lei de­mons­tra é que nem com os erros anterior­men­te come­ti­dos, entre nós, se aprende.

Os concursos, tal como as avaliações de custo-benefício, não são maçadas que só ser­­vem para se perder tempo, mas importantes instrumentos de racionalização na afe­tação dos recursos públicos, que, por um lado, permitem evitar a concretização de pro­­­­­­­jetos imponderados e, pelo outro, escolher, de forma trans­pa­ren­te, as pro­­postas mais eficientes, em condições de igualdade de oportunidade em relação aos dife­rentes ope­radores econó­mi­cos.

Por outro lado, está por demonstrar que todos os contratos a cele­brar até 2022 em to­dos os sec­tores re­fe­ridos são, por definição e natureza, carac­te­rizados por uma ur­gên­­cia in­com­patível com a realização de concursos e com a inob­ser­vância de outras re­gras diri­gi­das a promover a racionalidade e a transparência. Ao que acresce que os concursos não têm de ser tão demorados assim e que a lei já esta­be­lece regimes em que a urgência devidamente fundamentada, quando efetivamente exista, permite pres­cin­dir da sua rea­liza­ção: a dispensa da exigência de fun­da­mentação só pode, pois, ser­vir para dar cobertura a situa­ções em que a urgência não se justifica.

É difícil perceber se o que sustenta a Proposta de Lei em referência é apenas vo­lun­­tarismo e inconsciência. Mas não importa: em qualquer caso, o que nela se propõe é um regime que cria condições objetivas para um assalto sem precedentes aos fundos públicos, pelo que se impõe, se ainda for a tempo, um apelo ao bom senso. Para evitar que os anos de 2021 e 2022 venham a ficar ins­critos como mais uma página negra na triste história nacional de delapidação dos re­cur­sos de to­dos em benefício de uns poucos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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