Cada vez mais pessoas recorrem a programas de ajuda alimentar

Programa do Estado tem mais 40 mil pessoas do que em Março. Banco Alimentar também apoia hoje mais 60 mil. Cáritas só consegue ajudar metade de quem os procura. Novos pedidos à rede de emergência alimentar diminuíram, mas instituições temem impacto do fim do Verão.

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Miguel Manso

Seis meses depois de ter sido declarado o estado de emergência, o número de pessoas que recebe apoio alimentar do Estado tem vindo a aumentar. De 60 mil pessoas apoiadas em Março pelo Programa Operacional de Apoio Às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC), passaram para quase 100 mil em Agosto. Os dados de Setembro ainda não estão fechados, mas no total o programa já apoiou 117 mil pessoas. Estas podem ser apoiadas em meses não seguidos, estar no programa um mês, sair e depois voltar, esclarece o Instituto de Segurança Social (ISS), que forneceu os dados.

Em Junho o Governo anunciou que iria duplicar os apoios neste programa e reforçar o seu orçamento em 20 milhões de euros.

Também a Rede de Emergência Alimentar está a apoiar mais 60 mil pessoas do que antes da pandemia, totalizando agora 440 mil. Porém, Isabel Jonet,  presidente do Banco Alimentar contra a Fome, que gere esta rede, refere que houve um decréscimo nos novos pedidos, que tiveram o seu pico em Março e Abril, com 191 e 353 novos pedidos diários, respectivamente.

Hoje os números estão longe disso, mas depois de uma descida abrupta em Maio para 31 novos pedidos diários, começaram a subir desde 21 de Setembro, sendo os últimos registos de 48 novos pedidos diários. Mesmo assim, estão muito longe dos cerca de 50 pedidos mensais que os bancos alimentares recebiam em Janeiro. Cada pedido pode corresponder a várias pessoas. 

Mas Isabel Jonet acredita que, a partir de agora, “vamos assistir a um acréscimo das necessidades”: “Há uma incerteza angustiada.” Com o fim do Verão algum comércio e serviço ligados ao turismo fecharam, há despedimentos à vista. E as pessoas começam a precaver-se, acredita. No entanto, não acredita que os números cheguem aos níveis do início do confinamento. “Na altura as pessoas foram surpreendidas com o abrandamento brusco da economia, ficaram sem rendimento e impedidas de trabalhar. Hoje há moratórias, apoios da segurança social; os restaurantes, ginásios, feiras abriram, reduzindo a actividade e reajustando a sua dimensão, mas abriram. Psicologicamente, estar tudo encerrado e não se saber quando se pode retomar, é tremendo”. Além disso, há “uma economia paralela a funcionar”, com pessoas a fazerem biscates para complementar os apoios, refere.

Cáritas só apoia metade de quem os procura

No primeiro semestre do ano procuraram a Cáritas 50 mil pessoas: destas, conseguiram atender apenas 26.100 pessoas, ou seja, metade. “O boom deu-se em Abril e Maio, mas o número de pessoas mantém-se”, diz o presidente, Eugénio Fonseca. “Não houve novos casos, mas houve um aumento de pedidos. E as pessoas procuram mais vezes o apoio porque estão progressivamente a ficar com menos rendimentos e a fazer face aos encargos do dia-a-dia. Podiam levar rendimentos para um mês mas aparecem mais vezes, nota-se que estão mais empobrecidas. Os pobres estão a ficar mais pobres e os que não eram estão a ficar pobres”, afirma. 

A nível nacional, a Cáritas teve um aumento de 40% nos pedidos de ajuda no confinamento. Também a AMI diz que o número de novos casos aumentou 55% na fase de desconfinamento, tendo apoiado no primeiro semestre 5 mil pessoas.

Manuel Carvas Guedes, presidente do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo, nota uma mudança na fotografia: no início a crise não tinha chegado “tão rápido ao interior” como ao grande centro, mas agora essa tendência mudou e há pedidos a chegar a paróquias do interior. No ano passado, apoiaram cerca de 7600 famílias, no início da pandemia o presidente referiu que estavam a apoiar cerca de 24 mil, muitas delas “pessoas que nunca precisaram”. Neste momento não sabe exactamente quantas famílias apoiam mas sabe que as “pequenas empresas familiares foram atingidas”. Por outro lado, “há mais trabalho nas conferências mas menos gente” para o fazer.  

Já Renata Alves, directora da Comunidade Vida e Paz, que tem como objectivo estimular os sem-abrigo a sair da rua, diz que continuam a distribuir o mesmo número de refeições, cerca de 550 diárias. Mantém-se no perfil alguns desempregados que vêm pedir comida, muitos deles jovens. Calcula que o número de pessoas que vêm para Lisboa vá aumentar, chegando de outras cidades onde o turismo estava a “mexer”, e nota também que já há mais tendas na rua. 

E as dívidas?

E daqui para a frente? Eugénio Fonseca elogia as medidas do Governo para “estancar” a situação de aperto de muitas famílias, que poderiam viver “situações mais drásticas”, mas deixa o alerta: “Há pessoas que não têm rendimento algum, o único que têm é o Rendimento Social de Inserção (RSI), que não resolve as necessidades, sobretudo nos centros urbanos onde as rendas subiram escandalosamente.”  

Sublinha: “Não é dito às pessoas como amortizar as dívidas, nomeadamente das rendas, da electricidade, gás e água. Quando acabarem as moratórias vão ficar com as dívidas, além de terem que pagar o que consomem. Estou muito preocupado com o endividamento das famílias.”   

Já Sandra Araújo, da Rede Europeia Anti-Pobreza, lembra que o número de beneficiários do RSI subiu, com mais 12 mil pessoas a acederem a este apoio; o desemprego também, especialmente entre os jovens. “Tudo leva a crer que a situação de crise vai aprofundar e ter consequências muito graves para as populações. Há muito emprego precário. O sector da restauração e da hotelaria foi atingido, empregava muita gente, e há previsões de agravamento.”

Embora elogie o esforço do Governo, nomeadamente quanto a apoios de layoff ou a trabalhadores independentes, sublinha a “inquietação” com as “pessoas que não estão cobertas de maneira nenhuma pelos apoios”. Defende a criação de um rendimento mínimo e não duvida: “Toda a gente prevê que a situação vai piorar. Os números têm vindo acrescer, as pessoas estão assustadas. Vai haver uma retracção, e o pequeno comércio provavelmente não vai conseguir resistir. Isso vai cavar um fosso muito grande outra vez”, sublinha, lembrando que em Portugal há uma elevada percentagem de trabalhadores — 10 % — pobres. “Mesmo trabalhando estão em pobreza. Há causas estruturais que implicam medidas estruturais.”  

Ao presidente da Cáritas preocupa a quantidade de pessoas que irá para o desemprego, assim deixando de contribuir para a Segurança Social e perdendo benefícios para a reforma. Preocupa-o ainda o facto de quem ficou sem emprego perder o contacto social e as consequências que daí advêm nomeadamente na saúde mental. “Sabemos que vamos enfrentar uma crise económica pior que a anterior porque a escala vai ser mundial e as almofadas que poderiam vir de outros países não vão ser tão grandes. Estou muito preocupado com o que vai acontecer e a partir de Outubro. Vamos começar a ter sinais porque as empresas vão fazer opções: ou continuam ou fecham. Vamos ter restrições. O turismo não vai aparecer. A parte mais forte [do plano de recuperação social] tem que ser o combate à pobreza, mas o plano social vai além disso, tem de ir até ao apoio à terceira idade. Não podemos ser paralisados por uma pandemia e defender sistemas obsoletos. Temos é que defender as pessoas.”

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