Recuperação económica e Serviço Nacional de Saúde

Na recuperação económica e para o SNS, o que necessitamos é de planeamento e de capacidade de decisão aos vários níveis, para que seja executado. E salvo.

No momento em que se discute a recuperação económica face à crise, cada sector deve reflectir publicamente sobre a sua área. Na perspectiva não só de remendar os efeitos nefastos, mas com propostas concretas de melhoria e restruturação, pensando no dinheiro que virá da Europa. No plano Costa Silva, este dá ênfase às habilitações e administração no sector público. O que se passa e pode vir a passar no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

Porque é que houve eficácia demonstrada do SNS perante a epidemia? Não foi apenas a abnegação e cultura de cuidados do pessoal da Saúde. Foi a estrutura dos serviços e a base de funcionamento. Ficou demonstrado internacionalmente: os países onde há serviço de saúde universal tiveram uma resposta muito mais eficaz do que aqueles países onde o não há, exemplo maior os EUA. Não só isso. Portugal é um país com um Produto Interno Bruto baixo, em comparação com a França, a Alemanha ou a Itália No nosso caso, o SNS baseia-se no Orçamento Geral do Estado (OGE). É um mínimo de justiça social e de luta contra as desigualdades. Esta estrutura do SNS chama-se beveridgiana (lei do ministro Beveridge no Reino Unido). Não se baseia nem em seguros (como na Alemanha e como seria na lei Obama) nem na Segurança Social (França). Quem paga impostos contribui para o OGE, quem não paga é porque pode não contribuir. Todos beneficiam.

Comparando custos com a saúde nos vários países, esta estrutura é a mais barata, com os mesmos resultados. O SNS deveria, deverá, responder a todas as necessidades de cuidados de saúde, sem ter que pagar serviços a privados. O que norteia os privados é o mercado e, portanto, o lucro, o que norteia o SNS é o serviço público. Porque é que o SNS respondeu bem à epidemia? A resposta baseou-se no serviço e não no mercado. A estrutura do SNS, desde os hospitais aos centros de saúde, abriu-se e acolheu os suspeitos de covid-19, os infectados, os que tinham necessidade de ser monitorizados pelo telefone, os que deviam ser internados, os que precisavam de cuidados intensivos. A demonstração de que esta necessidade não podia ter resposta no mercado é que nenhum serviço privado abriu consultas ou internamentos para doentes suspeitos. Resposta nula. Não daria lucro. No entanto, não podemos ser cegos ao facto de os laboratórios privados terem dado uma resposta rápida e organizada. O Estado, institutos e laboratórios do Estado funcionaram e bem na resposta, mas foi necessário recorrer aos laboratórios privados. Trata-se aqui da necessidade excepcional de suplementar os serviços do SNS, como vem escrito na Lei de Bases. E, neste caso, a lei do mercado também foi favorável aos laboratórios privados.

Tem sido apontado como um défice de atendimento no SNS o facto de ter havido mais mortes durante o período de início da epidemia e o final do período de contingência em relação ao período homólogo do ano anterior. Esta análise tem de ser feita com cuidado. Nos últimos dados a que temos acesso, 2018, o total de mortes durante esse ano foi de 113.573 em valores absolutos. E a idade média da ocorrência foi 78,5 anos. Lembramos estes números para situar os óbitos por covid-19 e a média das idades em que ocorrem. Por muito que nos custe não ser eternos, nem os nossos familiares o serem, a verdade é que todos os dias morrem cerca de 311 pessoas por várias causas. Provavelmente convivemos pior com cada uma destas mortes do que se convivia na Idade Média, porque os humanos estavam acompanhados nessa altura por “Poderes invisíveis”, utilizando a expressão do historiador José Mattoso. Mas esta é a nossa realidade.

As causas de morte são maioritariamente as doenças do aparelho circulatório (29%) e os tumores malignos (24,6%), como na generalidade dos países desenvolvidos. Infelizmente, temos um índice de morte por pneumonias superior à generalidade destes países (11,7%). E temos mortes por diabetes superiores à média da União Europeia. Examinemos estas causas. A ocorrência de morte por doenças do aparelho circulatório apresenta-se sob formas agudas ou subagudas que levam o doente ao serviço de urgência (infartos e acidentes vasculares cerebrais). Pode pressupor-se, e empiricamente sabemos, que muitos destes doentes tinham medo, e têm, de ir ao hospital, porque receavam ser contaminados. Provavelmente esta foi a causa principal. Resta saber o que aconteceu com os doentes com tumores malignos. Nos IPO não estavam a receber “doentes covid-19”, pelo que o movimento só diminuiu em 6%.E as quimioterapias prosseguiram nos outros hospitais. Há pois que avaliar cuidadosamente e diagnóstico a diagnóstico as causas de morte do excedente de 2020 comparado com 2019.

Foquemos então as habilitações e a administração. No SNS temos duas vertentes distintas e com prestação também diferente. Os médicos, enfermeiros e técnicos superiores do SNS estão ao mais alto nível dos países desenvolvidos. Por razões históricas das últimas décadas, a formação é muito boa ou de excelência. Por isso emigram facilmente para países de topo. Os protocolos de diagnóstico e terapêutica são os mesmos dos países desenvolvidos. Perdeu-se o hábito de “ir lá fora” em casos considerados graves, porque cá dentro faz-se o mesmo. Os institutos de investigação públicos ligados às faculdades de Medicina e os de duas fundações têm resultados publicados que os colocam a alto nível. A organização e o conhecimento dos hospitais e dos cuidados primários permitiram que em poucos dias se organizassem espaços, percursos e pessoas para dar resposta à covid-19, que a plataforma de controlo clínico e epidemiológico funcionasse rapidamente, apesar de rodeada de críticas diárias malevolentes e causadoras de pânico. Pode perguntar-se qual o milagre humano que permite tudo isto com vencimentos tão baixos. E sem carreiras.

Não se pode dizer o mesmo da administração, no sentido lato, porque os problemas pré-covid estão lá. O progressivo espírito liberalizante extinguiu a Direcção-Geral de Construções Hospitalares, substituída pela Direcção-Geral das Instalações e Equipamentos de Saúde, progressivamente desactivada até o ser formalmente, em 2006. Deixou de haver planeamento, perderam-se camas hospitalares sem compensação por cuidados integrados. Não há avaliação da disponibilidade nem custos controlados. De cerca de 130 engenheiros e arquitectos hospitalares existentes em 2006, restam 40. O Estado emagreceu...

Com o emagrecimento lá se foram equipas, planeamento a médio e longo prazo, cálculo de custos. Foi-se comprando serviços ad hoc. A Direcção-Geral de Estudos e Planeamento foi extinta. Em relação ao choque informático, centros de saúde e hospitais equiparam-se bem, mas reduzidos em especialistas de informática, como todos nós que lidamos com o sistema sabemos. E ainda não há processo único a nível nacional para cada doente, o que pouparia muitos esforços, muita comunicação difícil, muita repetição de exames e histórias clínicas. E, no entanto, isto é possível, se houver a tal decisão, para além dos pareceres…

Se houvesse planeamento dos recursos humanos não teríamos tido de 1996 a 2018 uma redução de 25% do número de médicos dos 31 aos 55 anos por 100.000 habitantes na região de Lisboa e Vale do Tejo, único caso no país. Exactamente quando a área metropolitana estava a crescer em população! Os resultados estão exactamente à vista, durante a epidemia e com o enorme esforço que os médicos de Medicina Geral e Familiar desta faixa etária estão a fazer. A conexão entre Cuidados Primários, hospitais e eventuais centros intermédios em relação a consultas e equipamentos não foi ou foi pouco planeada.

Em resumo, não há ou há pouco planeamento em relação a equipamentos móveis e imóveis e a recursos humanos. A responsabilidade não é do actual Ministério da Saúde, além do mais com funções de bombeiro. Vem do percurso percorrido. Claro que a administração pública é muito apta para pareceres. Está equipada para isso em pessoal com formação superior. Para as decisões falta-lhe capacidade de planeamento e execução e tem outra causa mais profunda – “respeitinho” e medo do poder hierárquico. Não ousa. Esta é mais subjectiva, uma herança familiar e social que atravessou três gerações. É quase epigenética.

Portanto, na recuperação económica e para o SNS o que necessitamos é de planeamento e de capacidade de decisão aos vários níveis, para que seja executado. E salvo.

Médica, professora da FMUL e membro do grupo Estamos do Lado da Solução

Sugerir correcção