Covid-19 empurra tráfico de drogas ilegais para as redes sociais

Com o confinamento, os serviços de entrega ao domicílio e as redes sociais vêm-se substituindo aos mercados de rua no tráfico de drogas ilegais, alerta o Relatório Europeu Sobre Drogas 2020. Em 2018, 8300 pessoas morreram por overdose na União Europeia.

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A população consumidora de drogas é mais suceptível ao impacto do novo coronavírus e ameaça sobrecarregar serviços de apoio Pedro Fazeres (arquivo)

Menos cocaína e mais benzodiazepinas. A crise pandémica fez baixar os consumos de drogas ilícitas normalmente usadas em contextos recreativos, como o ecstasy e a cocaína, mas levou a um “aparente aumento do consumo de outras substâncias, como a cannabis e as novas benzodiazepinas”. O alerta está contido no “Relatório Europeu sobre Drogas 2020”, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), divulgado esta terça-feira.

Depois do declínio inicial nos mercados locais de drogas ditado pelo confinamento (e que levou mesmo a uma escassez da oferta e, consequentemente, ao encarecimento dos preços), “os grupos de crime organizado adaptaram rapidamente os seus modus operandi”. Tradução prática: em vez do tráfico de rua, os consumidores e revendedores passaram a usar mercados online, nomeadamente nas redes sociais e na darknet, bem como serviços de entrega de encomendas ao domicílio. 

Nada de demasiado novo. Trata-se aqui da confirmação de uma tendência que já vinha sendo observada. “Há menos negócio cara a cara e uma menor confiança nas transacções a dinheiro e é possível que estas mudanças de comportamento, uma vez estabelecidas, persistam para além da pandemia”, admite o OEDT neste relatório. 

Sem surpresas, até porque as fronteiras foram encerradas e o tráfego aéreo interrompido, “ao nível do mercado grossista, o contrabando por transporte aéreo de passageiros diminuiu”. Já o tráfico por via marítima “continuou em níveis pré-pandémicos”. “A produção de drogas sintéticas e o cultivo de cannabis na Europa também não parecem ter sido seriamente afectados”, observam ainda os autores do relatório.

Para o director do OEDT, Alexis Goosdeel, o impacto da pandemia a longo prazo no tráfico e consumo de drogas ainda está por avaliar. Isto apesar de, no curto prazo, haver mudanças visíveis, como o maior recurso às tecnologias digitais. Mas a preocupação principal prende-se com a sobrecarga dos serviços de apoio aos toxicodependentes. É que, apesar de estes terem sabido encontrar novas soluções de saúde em linha e móvel, segundo o relatório, é expectável que, à medida que as repercussões económicas da crise se agudizem, algumas pessoas fiquem “mais vulneráveis aos problemas relacionados com as drogas e ao envolvimento no mercado de drogas”, exercendo por isso uma maior pressão “em serviços já sobrecarregados”.

“É essencial agir rapidamente para identificar e enfrentar novas ameaças que possam decorrer desta situação em rápida evolução”, alerta o OEDT. Esta necessidade é premente se atendermos ao facto de os consumidores de substâncias ilegais, sobretudo os de longa data, serem mais susceptíveis aos efeitos de uma infecção pelo novo coronavírus. Por causa dos hábitos de partilha de material, mas também por se tratar de uma população cujo sistema imunitário tende a estar comprometido.

Mais gente a iniciar tratamento por causa da cocaína

Estas ameaças surgem numa altura em que se estima que a União Europeia tenha sido palco de 8300 mortes por overdose em 2018, segundo os últimos dados disponíveis e que o próprio relatório admite estarem aquém da realidade. Seja como for, se recuarmos a 2012, e nos ativermos às overdoses na faixa etária acima dos 50 anos, o aumento ascende aos 75%. “As mortes por overdose de opióides podem ser evitadas com a administração atempada da naloxona”, insistem os responsáveis do OEDT, numa altura em que em Portugal ainda se batalha para que seja possível às equipas de rua e aos próprios consumidores recorrer àquele antagonista opiáceo. As preocupações de saúde pública assumem carácter de urgência considerando, como os autores do relatório, que no ano passado foram detectados pela primeira vez oito novos opiáceos sintéticos não controlados. “Seis não eram derivados do fentanilo, mas representam uma ameaça similar em termos de saúde pública”, precisam.

Ao fim de 25 anos a monitorizar o mercado europeu das drogas, o OEDT traça um retrato de um 2019 marcado por apreensões recorde de cocaína, nomeadamente na Bélgica, Espanha e Países Baixos. “As apreensões de cocaína atingiram um recorde histórico de 181 toneladas (110 mil apreensões)”, precisa o relatório, cujos autores sublinham a preocupação com o aumento da pureza da substância, por um lado, e com o crescimento do número de pessoas que iniciam tratamento pela primeira vez, por outro.

Estima-se que em 2018 cerca de 75 mil europeus tenham iniciado tratamento por causa do consumo de cocaína, 34 mil dos quais pela primeira vez. “Após um período de declínio, os tratamentos iniciados pela primeira vez tendo a cocaína como principal droga de consumo aumentaram, entre 2014 e 2018, em 22 países europeus”, sublinha o documento, que admite que possa haver um intervalo de 11 anos em média entre o início do consumo e a procura de tratamento. A idade média dos consumidores quando iniciam tratamento fixa-se nos 34 anos.

O volume de heroína apreendida na União Europeia também quase duplicou entre 2017 e 2018 (de 5,2 para 9,7 toneladas). “Existem relatos constantes de algum fabrico de heroína na União Europeia”, reporta ainda o relatório, para enfatizar a necessidade de “mais vigilância para detectar quaisquer sinais de aumento do interesse dos consumidores por esta droga”.

Cannabis duas vezes mais potente

Numa altura em que se calcula que 96 milhões de europeus, isto é, 29% dos adultos com idades entre os 15 e os 64 anos, experimentaram uma droga ilegal pelo menos uma vez na vida, o OEDT soma novas preocupações às já elencadas e que se prendem com o aumento da produção de drogas sintéticas, a par da cada vez mais elevada potência da cannabis. “A resina de cannabis e a cannabis herbácea contêm agora, em média, cerca de duas vezes mais THC do que há uma década. Isto exige “um acompanhamento rigoroso do mercado”, num momento em que estão também a aparecer novas formas de cannabis”, lê-se no documento, que aponta os derivados concentrados e comestíveis como exemplos.

Recorde-se, a este propósito, que cerca de 15% dos jovens adultos europeus declararam ter consumido cannabis no ano último ano.

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