Operação Lex: um sismo institucional

Digo-o como político: para a democracia e para a sociedade é bem mais perigoso que se suspeite dos juízes do que dos políticos.

1. Há momentos tão sérios e graves na vida político-constitucional dos Estados que não podem ser nem ignorados nem desvalorizados. São de tal maneira dramáticos que não devem ser dramatizados. E ainda que as carpideiras do regime espreitem à porta, quando a ferida é profunda, quando atinge os órgãos vitais, quando põe tudo em risco, não há lugar para a gritaria nem para o espectáculo. Quando a independência e a imparcialidade da justiça são postas em jogo, o assunto é de vida ou morte. Não pode haver nem disfarce nem conformismo. Para questões autenticamente graves tem de convocar-se a gravitas, a “gravidade”.

2. Há décadas que estudo e acompanho os temas do poder judicial e julgo conhecer razoavelmente o sistema judicial português. Há mais de vinte anos que, em escritos académicos e em intervenção cívica e política, me tenho batido por mudanças substanciais na área da justiça, todas orientadas para reforçar a legitimidade, a responsabilidade e o escrutínio do poder jurisdicional e dos seus actores. Trata-se de legitimar e responsabilizar democraticamente um poder cada vez mais relevante, sem que isso diminua ou belisque, muito pelo contrário, a independência judicial e a autonomia da perseguição criminal. Eis uma tarefa constitucional complexa e delicada: garantir a legitimação e assegurar a responsabilidade, preservando a independência e aumentando a eficácia.

3. Não tenho – ou não tinha – dúvidas, todavia, de que o principal problema da justiça portuguesa é de ordem prática: a lentidão, a falta de celeridade e de prontidão. A que se seguirá um problema já com índole institucional: a prevalência entre os magistrados de uma atitude e mentalidade de “carreira”, de “funcionário” e de “corpo” pouco compatível com a titularidade de um órgão de soberania ou a participação no exercício de funções soberanas. De um vastíssimo contacto com o mundo judicial, sempre me ficou a impressão de que os magistrados portugueses eram (e são) sérios, íntegros, honestos. Poderia criticar-se o dito espírito de corpo, o refúgio sistemático na falta de meios, uma tendência exacerbada para a tomada de decisões formais, mas sempre com um apego intrépido à honestidade diante das partes e à imparcialidade diante dos casos. Com efeito, deles se poderia e pode dizer que cultivam o último reduto e a mais sólida garantia da independência judicial: aquilo a que Castanheira Neves tão apropriadamente chamou a “independência vocacional”.

Nos muitos casos de responsabilidade disciplinar, têm estado o incumprimento de obrigações de assiduidade e desempenho, a violação de deveres de exclusividade, os casos de abuso ou excesso de poder ou até a intercorrência de perturbações de “personalidade” ou de “carácter”. Mas não a corrupção, não o suborno, não o favorecimento, não o clubismo, não o amiguismo, não a predilecção. Esta realidade e a imagem de dignidade e decência pública que ela projecta são aptas a gerar uma enorme confiança no sistema e emprestam-lhe uma inegável legitimidade que permite superar ou, ao menos, compensar a profunda insatisfação social com a morosidade endémica.

4. O caso Lex – mesmo tendo em conta que se está ainda diante da fase da acusação – representa um verdadeiro ponto de viragem. Pela primeira vez, há uma suspeita consistente de que juízes foram corrompidos e actuaram sistematicamente ao serviço de interesses completamente estranhos ao seu múnus. Pior, há uma suspeita fundada de que não se tratou de uma actuação individual, tipicamente patológica, mas de uma actuação em concerto e em conluio. Pior ainda, não se cura de um grupo de juízes com pouca experiência ou de uma instância inferior. Todos eles são juízes de um tribunal superior, um deles com responsabilidades de presidência, com reconhecimento público e totalmente integrados e relacionados no meio judicial. A conexão, ainda que parcelar, ao mundo do futebol só contribui para tornar mais densa e pesada a suspeição. A ligação, também parcial, ao caso José Sócrates sublinha as alegadas cumplicidades com a política. A circunstância infeliz e funesta de António Costa se ter deixado associar à candidatura futebolística de um dos arguidos é mais um ingrediente que alimenta a desconfiança de um suposto triângulo “justiça-futebol-política”. A ministra da Justiça – que, aliás, não resistiu a “desculpar” Costa com a tirada da “contradição íntima” – não podia ter tido mais infausta oportunidade e pior conjuntura para apresentar o seu tardio pacto anti-corrupção.

5. É por demais evidente que um caso com estes contornos mina profundamente a confiança no poder judicial e tem efeitos devastadores junto da percepção dos cidadãos. Diante de um sismo institucional desta gravidade e para que ele não se transforme num terramoto, com ou sem tsunami, será necessário que os Conselhos Superiores, os Presidentes dos Tribunais Supremos, a Procuradora-Geral, os Bastonários, as associações sindicais e os seus dirigentes e, bem assim, as classes profissionais façam tudo o que está ao seu alcance para restaurar a confiança na probidade e na seriedade dos nossos magistrados. E o mesmo se diga do Governo e, muito em especial, do Presidente da República. Até aqui, só o Presidente da Associação Sindical esteve à altura do momento. O silêncio dos restantes responsáveis e o uso menos feliz da palavra “feliz” pelo Presidente não ajudaram muito.

6. Subsiste o risco de a vox populi alimentar a retórica demagógica dos que acham que “afinal, são todos iguais: até os juízes!” e dos que acreditam que o “país está nas mãos de uma casta”. E do incentivo a litigantes prevaricadores para fazerem tentativas de “aproximação” e de “abordagem” a magistrados, que até aí não se atreviam a empreender. Enfim, também os juízes serão trazidos para as “conversas de café” que dantes visavam primacialmente os políticos. E, digo-o como político: para a democracia e para a sociedade é bem mais perigoso que se suspeite dos juízes do que dos políticos.

SIM. Ursula von der Leyen. A Presidente da Comissão fez um discurso notável sobre o estado da União, mostrando ambição e visão para o futuro e assumindo-se como a líder europeia do futuro.

NÃO. Donald Trump. A vontade de substituir a notável e lendária juíza Ruth Ginsburg antes das eleições é mais uma péssima prática democrática, com efeitos eleitorais e efeitos político-jurídicos de médio-prazo.

Sugerir correcção