Cada caso é um caso: um obstáculo artificial à consagração legal do regime preferencial da residência alternada

Será tal argumento, repetido ad nauseam, incompatível com uma legislação que aponta a residência alternada como preferível em situações de divórcio? Claro que não! Mas esta pergunta está, deliberadamente, ausente do debate.

Cada caso é um caso é um argumento que tem sido amplamente usado para travar os Projetos de Lei, em discussão na Assembleia da República, no sentido de consagrar na legislação portuguesa o regime preferencial (e não a presunção jurídica!) da residência alternada para criança de pais e mães separados. A defesa deste argumento, mesmo se entendida enquanto posição moderada, que não nega o interesse da residência alternada em determinadas condições (leia-se, ideais), não resolve, no entanto, a subjetividade do conceito de superior interesse da criança e a discricionariedade das decisões judiciais.

Será tal argumento, repetido ad nauseam, incompatível com uma legislação que aponta a residência alternada como preferível? Claro que não! Mas esta pergunta está, deliberadamente, ausente do debate. Com efeito, transmite-se a ideia de que a alteração legislativa viria impor a residência alternada enquanto um modelo rígido, que seria aplicado cegamente por todos os/as magistrados/as e a todas as crianças. Tal demonstra o desconhecimento de conceitos ou a deliberada pretensão de manter o status quo no Direito de Família e das Crianças, ao arrepio do que é recomendado por convenções internacionais e resoluções europeias.

A residência alternada está ligada ao tempo que as crianças passam com ambos os pais e as mães, sendo que a literatura internacional considera que estamos perante a mesma quando existe um convívio com ambos em 33 a 50% do tempo. E porquê este tempo? Porque é aquele que permite construir um quotidiano familiar e social, uma vivência verdadeiramente comum, potenciando o envolvimento parental mais igualitário, com comprovados benefícios para o desenvolvimento da criança a curto e a longo prazo. Ora, dentro deste conceito de tempo (que pode e deve ser incorporado nos atuais Projetos de Lei) abre-se um espaço bastante flexível de adaptação a cada caso concreto. Se a legislação vier a estabelecer este regime preferencial, isso significa que, na sua aplicação, deverá verificar-se, primeiro e antes de mais, se residência alternada é possível no caso concreto daquela criança e só depois considerar outras hipóteses.

Voltemos às interrogações. Se o regime preferencial da residência alternada não afasta a análise casuísta, ao contrário do que se tenta passar, quais as vantagens, então, de uma orientação normativa deste tipo? Não bastaria apostar na formação dos magistrados ou promover a reforma judiciária? Na realidade, também é preciso e uma coisa não exclui a outra. Mas uma orientação normativa deste tipo ajuda a dar substância ao conceito de superior interesse da criança; a reduzir tanto a especulação sobre o destino da criança (“com quem vai ficar/viver?”), como o poder discricionário dos magistrados; e a evitar a presença de estereótipos de género e de idiossincrasias nas decisões. Esse poder discricionário é o que tem levado a muitos pais e muitas mães a envolverem-se em conflitos parentais e processuais, em que o “vencedor fica com a criança” e onde tudo é permitido para validar pontos de vista individuais (inclusive manipulando as crianças para tal fim). Uma orientação legal ou normativa serve, exatamente, como ponto de partida para os magistrados e demais profissionais envolvidos nestes processos, mas também enquanto mensagem muito clara para a sociedade que o envolvimento parental mais igualitário é o melhor garante do superior interesse da criança.

Por fim, tem-se enfatizado a necessidade de manter o status quo relativamente ao envolvimento parental anterior à separação conjugal, entendendo-se aqui a residência alternada enquanto prémio em caso de comprovada igualdade parental. Ora, a separação conjugal é, necessariamente, um momento de rutura e de readaptação individual e familiar. Mesmo que na constância da conjugalidade tenha existido uma desigualdade no envolvimento parental, e são várias as circunstâncias que a isso levam, o que se segue é um período de adaptação à nova realidade familiar. Ser mãe e ser pai após separação conjugal é, para ambos, uma oportunidade de aprendizagem e de capacitação, que só é possível com a prática, ou, como se diz em linguagem popular, “metendo as mãos na massa”. Decerto, uma criança terá um desenvolvimento mais harmonioso se a separação conjugal lhe trouxer um envolvimento do pai e da mãe mais igualitário, presente e cabal quanto às diferentes dimensões da sua vida e do seu desenvolvimento.

O estabelecimento legal da residência alternada (que se consubstancia em tempos tendencialmente igualitários), enquanto regime preferencial, ao colocar a tónica no direito da criança ao envolvimento parental igualitário e não na disputa parental, vai permitir acabar, em grande medida, com conflitos parentais que tem atingido, durante décadas, gerações de crianças. Argumentar com cada um caso é um caso mais não é do que criar um obstáculo artificial a uma mudança legislativa que se impõe e ao progresso social e familiar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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