Obrigado, Vicente

Durante a faculdade percebi que a minha forma abrangente de interpretar o mundo e o outro se devia em grande parte à leitura do PÚBLICO. Recordo bem alguns debates em assembleias que se alongavam devido à falta de fundamento e de capacidade de estar para além da Medicina.

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Jorge Barbosa

Uma das minhas saudáveis rotinas — conceito subvalorizado e que seria tema para outra crónica — é ler diariamente o PÚBLICO. Como quase todos os bons hábitos, este começou seguindo o exemplo familiar, em que os livros e os jornais são uma constante.

Quando recordo as primeiras leituras do diário, quais são as principais recordações? Na verdade, a minha memória inicial é constituída pelo cheiro do papel impresso e pelo toque de cada página.

Como muitos leitores tinha o hábito de ler de trás para a frente, começando pelo humor de Bill Watterson. As tiras de Calvin & Hobbes são simples, mas não simplistas, e foi sem surpresa que as reli no secundário durante as aulas de Filosofia.

Desde cedo, o foco do jornal, sem ignorar a realidade lusa, esteve na política internacional. As variadas reportagens, longas, sobre o que se passava para além das nossas fronteiras despertaram em mim curiosidade que ainda hoje tento aplacar. Ao explicar o contexto, os jornalistas do PÚBLICO ensinaram-me os valores da tolerância e da memória. Foi desta forma que fui ao encontro da imprensa internacional e dos livros de história. Esta visão global e cosmopolita ainda hoje é solução para não me envolver em discórdias paroquiais que são instigadas pelas redes sociais.

Quanto às crónicas, é quase impossível não destacar Eduardo Prado Coelho que, para mim, subsiste como modelo de cultura abrangente partilhada por uma escrita fluida.
Como leitor voraz, não posso deixar de salientar a generosa colecção Mil Folhas que me deu acesso a obras de Auster, Orwell ou Llosa. Longe do rodopio das montras, há literatura clássica nas estantes de muitos portugueses graças a esta e outras iniciativas.

Durante a faculdade percebi que a minha forma abrangente de interpretar o mundo e o outro se devia em grande parte à leitura do PÚBLICO. Recordo bem alguns debates em assembleias que se alongavam devido à falta de fundamento e de capacidade de estar para além da Medicina.

Há edições em papel que guardei, consciente da importância do momento. Uma delas foi a edição após o 11 de Setembro. Percebi, como o título lapidar expressou, que nesse dia o atentado tinha mudado o mundo.

Como em quase tudo na vida, nem sempre concordei com o que li. Algumas cedências nos títulos e algumas opiniões pouco esclarecidas eram e são mote para debate. No entanto, esta salutar oportunidade de ter contacto com visões diferentes da minha é uma das mais-valias do jornal e que nenhuma rede digital pode substituir. Hoje o Público é vários Públicos com o P3, Ípsilon e Ímpar, só para dar alguns exemplos. É esta pluralidade — rara nestes tempos de tribalismo — um dos valores a cuidar e incentivar.

Destaco também as reportagens sobre ciência que são uma raridade na imprensa nacional. Os níveis de literacia em saúde são assustadoramente baixos em Portugal, com consequências palpáveis no meu dia-a-dia como médico de família e com potencial nefasto para a nossa comunidade. O combate esclarecido contra a pseudociência pode parecer hercúleo, mas os textos de David Marçal, por exemplo, são instrumentais.

Por fim, fica a relação próxima com o jornal e os seus profissionais e que me impulsionaram hoje, após o desaparecimento de Vicente Jorge Silva, a escrever este texto.
É por tudo isto que eu arrisco o tom coloquial: obrigado, Vicente.

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