Prémios e acordos na justiça penal

O governo sempre tinha dito – e bem – que não ia importar a delação premiada do Brasil. Porém, a solução proposta comporta o risco de se deixar entrar pela janela aquilo a que quis fechar a porta.

A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, aprovada pelo governo, contém um conjunto articulado de medidas relevantes para a prevenção e repressão da criminalidade económico-financeira. Na primeira leitura, há duas que saltam à vista, ambas surpreendentes, uma por más e outra por boas razões.

A surpresa que suscita maiores reservas é a consagração do benefício da dispensa da pena, quase automático, sujeito a mero controlo formal do juiz, para os agentes de crimes de corrupção que antes de serem sujeitos à instauração formal do procedimento criminal denunciem os comparticipantes. O governo sempre tinha dito – e bem – que não ia importar a delação premiada do Brasil, objecto de tanto ruído e fundadas dúvidas morais, e que estava apenas em causa a ampliação de mecanismos premiais já previstos na lei portuguesa. Porém, a solução proposta comporta o risco de se deixar entrar pela janela aquilo a que quis fechar a porta.

A lei actual tem uma diferença decisiva em relação à delação premiada do Brasil: a dispensa da pena não é atribuída automaticamente ao criminoso/denunciante sem validação por um juiz. Em julgamento, o juiz tem sempre de verificar se a ilicitude do facto e a culpa são diminutas e se a dispensa da pena cumpre as exigências de prevenção. É verdade que a incerteza sobre a obtenção do benefício não facilita a quebra dos pactos de silêncio. Mas é isso, precisamente, que impede a criação de espaços impróprios de negociação da denúncia de terceiros em troca da impunidade do denunciante, à margem do controlo do juiz, em momentos anteriores ou laterais ao processo formal. É também verdade que antes de 2015 a lei chegou a prever a obrigatoriedade da dispensa da pena. Só que, como a denúncia que podia dar lugar à dispensa de pena tinha de ser feita nos 30 dias posteriores ao crime, não se chegava a estabelecer o contexto favorável à tentação de trocar essa denúncia por um prémio imoral. Por outro lado, num sistema que se quer coerente, é preciso ver que a dispensa da pena está sempre condicionada à verificação judicial dos pressupostos relativos a ilicitude, à culpa e à prevenção em todas as outras situações em que o código penal a admite.

Penso pois que esta proposta fragiliza politicamente a estratégia de combate à corrupção, porque se aproxima demasiado da odiosa delação premiada e dá argumentos fáceis aos demagogos que não querem mudar nada e aos conservadores que receiam todas as mudanças.

A boa surpresa é a possibilidade do arguido e o Ministério Público acordarem na redução da medida da pena aplicável, em troca da confissão integral e sem reservas dos factos da acusação em julgamento. O nosso sistema conhece há muitos anos mecanismos de justiça penal consensualizada na baixa criminalidade, como a suspensão provisória do processo, o arquivamento com dispensa de pena ou o processo sumaríssimo. Na Europa, sob diversas formas, a negociação das sanções penais é já admitida em países como a Alemanha, Itália e Espanha. Admito que uma medida como esta, inovadora e aplicável à alta criminalidade, suscite polémica e resistência. Da minha parte, que não acredito que se possa parar o vento com as mãos, vejo-a como positiva e inevitável, desde que respeite os limites impostos pela Constituição e pelos princípios caracterizadores do nosso processo penal.

Os acordos sobre a pena devem resultar de conversações entre o Ministério Público e o arguido e eventualmente o assistente/ofendido. O juiz não pode estar envolvido na dinâmica da negociação, como gestor do acordo sobre a pena que terá de validar. O objecto do acordo só pode incidir sobre os limites da pena aplicável e nunca sobre a veracidade dos factos, a tipicidade penal e a própria condenação. O acordo tem de ser alcançado na fase do julgamento, que é pública e sindicável, e não em momentos anteriores do processo, sem controlo judicial e com riscos acrescidos de utilização indevida. A redução de pena que possa resultar do acordo, deverá sempre ser consequência de uma confissão livre, integral e sem reservas dos factos e suficientemente relevante para a prova dos mesmos. Será também inadmissível qualquer sistema de consenso sobre a pena que vincule o tribunal à aplicação de uma sanção concreta. Ao juiz terá de caber sempre a função de verificar a voluntariedade, suficiência e relevância da confissão dos factos, pela qual o arguido admite a culpabilidade, de decidir se a prova desses factos integra o crime imputado na acusação ou outro, mais ou menos grave, punível com pena distinta, e de verificar, no final, se os limites da pena que lhe são propostos respeitam o núcleo essencial do princípio constitucional da culpa, como fundamento e limite da sanção penal. Isto porque o princípio constitucional da reserva de jurisdição impõe que a função de administrar a justiça, na qual se compreende, sem dúvida, a condenação numa pena como consequência da prática de um crime, pertença a um tribunal, com juízes independentes e imparciais.

É vital abrir a discussão pública sobre estas matérias tão fundamentais. Todos devemos participar, com sentido crítico e consciência que se nada se mudar fica tudo na mesma.

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