Vicente, uma conversa interminável

Vicente era um observador capaz de captar uma essência e transmitir essa impressão de modo a empolgar quem estivesse por perto. Na redacção de um jornal, ter alguém assim como director é um imenso privilégio.

“... e era já manhã, um outro dia tranquilo. Recordo o perfume quente, as vozes nas ruas. Sei onde cai a uma certa hora a quadra do Sol na tijoleira da sala”, escreveu Cesare Pavese em Férias de Agosto, um dos livros preferidos de Vicente Jorge Silva. Vou saber sempre onde estava a luz na manhã de 8 de Setembro de 2020. O telemóvel tocou quando o sol batia em cheio no azul do mar, destoando-o. Era quase só um brilho-prata contra os meus olhos.

O Vicente tinha prazer em oferecer aos amigos os livros de que mais gostava. Uma vez tirou da sua estante um dos exemplares que ali estavam para esse efeito, uma edição velhinha da Arcádia e disse: “é para si”. Contou que andava uma vez em campanha, como jornalista, e reparou que havia muitos exemplares num dos alfarrabistas da Baixa, comprou todos, e foi oferecendo. O livro, contava, remetia-o para um certo ideal de infância em que o tempo se estendia, quase eterno. No caso dele, um ilhéu, essa sensação de eternidade parecia consubstanciar-se na dimensão espacial, prolongava-se no mar. Tempo e espaço ilimitados nas férias de um Agosto imaginário que não custava nada perseguir como hipótese de felicidade.

Pavese era um dos seus escritores de eleição. Como Herberto Helder, Camus, Dostoiévski, Flaubert... Recorria muitas vezes a eles para comentar a vida, a actualidade. A mim, ocorre-me agora Pavese. O Vicente morreu e a luz no mar mantém-se. Não há clemência para digerir o facto. Conheci o Vicente Jorge Silva em 1997 e desde então ficámos próximos. Porto Santo, a sua única longa-metragem, acabara de estrear e fui entrevistá-lo. Nessa conversa, percebi o que todos recordam como uma das suas características mais marcantes: a paixão que punha no que fazia e no que dizia, uma maneira única de manipular a linguagem – com o auxílio da sua expressão fácil – para sublinhar o propósito ou efeito pretendido. Quem o conheceu bem sabe os vários tons e expressões que podia dar à palavra “mariola”, ou “cretinóide”, ou “totó”, ou “impensável”. Ele era um observador capaz de captar uma essência e transmitir essa impressão de modo a empolgar quem estivesse por perto. Na redacção de um jornal, ter alguém assim como director é um imenso privilégio. 

O Vicente nunca foi meu director no PÚBLICO, o jornal que leio desde o primeiro número quando era estudante de jornalismo, e onde escrevo desde 2012. Tenho pena. Mas – privilégio – foi meu director. Depois da conversa sobre o filme, seguiram-se outras, tendo o jornalismo como ponto de partida. Quando em 2000 fundou uma revista, um projecto derrotado editorialmente, convidou-me para fazer parte da equipa e fez mais: convidou-me a participar da grande conversa, as discussões editoriais, com gente que, aos meus olhos de 20 e poucos anos, era muito importante. Ouvia-me da mesma maneira. A mim e aos mais novos como eu. Expunha-se diante de todos nas suas dúvidas, na sua curiosidade pelo mundo. Não tinha medo de revelar inseguranças, fragilidades. Era genial no modo de pensar e só sabia trabalhar apaixonado por projectos tendo ao lado pessoas que respeitasse intelectualmente. Não era alinhado a não ser com aquilo em que acreditava e, se errasse, não se importava de assumir o erro. Eram os ossos do seu ofício. O de jornalista, o de cineasta, o de deputado, o de comentador. Sempre inquieto, “um homem de “contradições insanáveis”, com grande compulsão criativa e “cedência à preguiça” enquanto um dos “direitos inalienáveis” do ser humano, como referiu no livro que me convidou a fazer com ele, Vicente Jorge Silva conversa com Isabel Lucas.

Não é um livro de memórias. Era a decorrência das conversas que íamos tendo ao longo de anos em almoços que colavam com o jantar, cheios de peripécias, de non-sense. Sobre literatura, cinema, viagens, pintura, política, gastronomia. Sobre tudo. Não havia interditos. Uma vez ele desafiou-me: “E se ligássemos o gravador?” As histórias, as ideias, os pensamentos sucediam-se com recurso a uma memória invejável, com uma ordem – ou desordem – caótica, porque o Vicente era assim. Leitor voraz de jornais, revistas, livros, fazia associações rápidas, convocava personagens, memória de viagens, fazia uma leitura e uma análise transversais que lhe serviram para ser um director com capacidades raras de liderança, capaz de se movimentar em todas as áreas e  ainda mais raro –de constituir equipas para responderem à especificidade de cada assunto, capazes de lhe tirarem dúvidas que expressava sempre. Ele sabia qual a melhor pessoa para escrever sobre um tema e corria para a ter.

Estou a escrever sobre um amigo quando sei da morte dele. “Amigo é amigo, não tenhas medo de ser lamechas”, disse-me, por sua vez, uma amiga quando referi o meu temor de escrever hoje sobre o Vicente. Seja. Muita gente vai referir – e bem e com mais competência -- o homem que mudou o jornalismo em Portugal. Talvez alguém se lembre de referir o certo abandono que sentiu a dada altura da sua vida profissional. Talvez por nunca ter sido alinhado. Irão decerto referir que nos últimos anos se sentiu apaziguado na relação com o seu jornal, que nunca deixou de criticar enquanto leitor atento, ou elogiando – sempre um alívio quando o telefone tocava e do outro lado vinha um “Oh pá, aquilo está muito bom!”

O jornalismo, como o Vicente o pensava, é o jornalismo que quero fazer. Livre, desalinhado, que suscite discussão, curioso acerca do mundo, atento ao humano, seguindo preceitos éticos que estão no código deontológico e no livro de estilo do PÚBLICO que ajudou a escrever e que estudei na universidade como uma espécie de Bíblia. Persigo esse ideal sem o “optimismo genético” do Vicente, quase como se persegue uma ideia de felicidade mesmo sabendo dos tropeços, como o Vicente a perseguia na ideia de infância segundo Pavese. Quando não for capaz, quando não puder, vou embora do jornalismo. O Vicente ensinou-me.

O Vicente nunca conseguiu, contudo, ensinar-me o que fazer com as mãos ou com a expressão nos piores momentos. Assumia uma gravitas muito singular. O modo como agarrou o meu braço para que eu não entrasse na Sé de Braga onde estava a ser velado um grande amigo comum: o jornalista Torcato Sepúlveda. “Não vá. Vai comover-se muito.” Ia, é verdade, mas soube ali que não seria só eu. Ou como, no cinema, chorámos a ver Amor, de Haneke. Olhou para mim, cruzou as mãos, e disse: “Pois é!”

Há mais ou menos 15 dias o Vicente ligou-me, a voz frágil: “Quando é que me vem visitar?” Não era o telefonema do costume nas últimas semanas a tentar agendar um almoço ou um jantar que depois adiava por não se sentir muito bem. Era diferente. Encontrei-o mais magro, o mesmo olhar, o Le Monde do dia no colo, como acontecia todos os dias. Recebeu com entusiasmo o livro que lhe levei, Contos Completos, de Graça Pina de Morais, demorou-se a folheá-lo, comentou com a mulher, a Rosana, a escritora que admirava, e falou de tudo, como sempre, com a mesma curiosidade. No fim, pediu-me um abraço e saí com o mesmo entusiasmo com que saí de outras conversas com ele, a pensar que a curiosidade é uma dádiva e depois que ele me ia dizendo, de vez em quando, depois de 2013, depois do livro, sempre que lhe ocorria um pensamento novo, uma história nova: “E se voltássemos a ligar o gravador?” Agora gostava de o ouvir sobre a sua morte. Não seria, por certo, tabu.

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