Bicicleta e comboio: melhores aliados para melhoria da mobilidade nas nossas cidades?

A flexibilidade da bicicleta, aliada à capacidade e velocidade de médio curso do comboio, podem ser importantes contribuidores para a resolução dos desafios de mobilidade das cidades portuguesas.

Atravessamos um momento em que a bicicleta recupera o estatuto, há muito perdido, de meio de transporte urbano. A visibilidade da bicicleta no quotidiano tem aumentado notavelmente nos últimos meses, seja pelo aumento do número de bicicletas nas ruas, pela sua inaudita presença em anúncios comerciais, ou pela discussão pública que tem gerado.

Efectivamente, existe um largo número de vantagens, a nível de saúde e do ambiente para os utilizadores, mas também para as finanças dos governos locais e central, que justificam tal adopção. Portugal, que sofre de uma das mais baixas taxas modais de bicicleta da Europa, foi o quarto país do continente a comprometer-se com um maior número de quilómetros de novas ciclovias (é neste momento o décimo em termos de implementação). Serve cá dentro de inspiração e modelo o trabalho conduzido pela cidade de Lisboa e pela equipa de mobilidade liderada pelo vereador Miguel Gaspar.

Apesar dos muitos benefícios que aporta, a promoção da bicicleta nas maiores cidades portuguesas arrisca-se a deixar de parte aqueles que se deslocam diariamente a partir da periferia. Que poderá ser feito para que não-residentes possam beneficiar da nova infraestrutura?

Promover a intermodalidade através da bicicleta

Uma típica viagem de transportes públicos desde a periferia até ao centro da cidade tem dois componentes: um troço de viagem relativamente longo, realizado em um ou dois transportes diferentes, e um troço relativamente curto, já dentro da cidade. Este último troço, ou last-mile, poderá ser feito a pé, ou recorrendo a outro transporte. No segundo caso, será necessário deslocar-se até à estação, esperar alguns minutos pelo transporte, ou até efetuar transbordos.

Em Lisboa, em virtude da expansão da rede ciclável, uma nova alternativa será utilizar a bicicleta para esta componente last-mile. Contrariamente aos transportes públicos, uma deslocação por bicicleta não requer qualquer transbordo ou tempo de espera, o que diminui significativamente o tempo total de viagem, e o tempo percepcionado pelo utilizador. Adicionalmente, e ao contrário de todos os outros meios de transporte, incluindo o automóvel, o tempo de viagem de uma bicicleta é altamente previsível, visto não existirem riscos de congestionamento ou problemas operacionais.

Na realidade, o que a bicicleta permite é um aumento significativo da área de cobertura (que aqui se considera de 10 min de viagem desde ou até à estação) das estações de transportes. Ao passo que, a pé, uma estação permite uma área de cobertura com um raio de 800 m, de bicicleta esse raio aumenta para 2,5 km, resultando num aumento de quase dez vezes de área coberta. Isto permite não só uma maior cobertura de locais, mas também uma maior escolha de estações: em vez de escolher a estação mais próxima, o utilizador poderá escolher a estação que minimiza o número de transbordos, poupando-lhe mais tempo, e reduzindo a ocupação desses transportes.

Aprender com as melhores referências

Este sistema de last-mile é utilizado em vários países na Europa, sendo os Países Baixos, uma referência mundial na área da mobilidade, o melhor exemplo. Conhecido líder na utilização da bicicleta, este país é também líder europeu na percentagem modal, por quilómetro, na utilização do comboio. Efectivamente, 44% do total de viagens de comboio nos Países Baixos iniciam ou terminam com uma bicicleta. Assim, a falta de granularidade de last-mile do comboio é compensada com a flexibilidade, e rapidez em meio urbano, da bicicleta.

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Área de cobertura das principais estações ferroviárias da Linha de Cintura de Lisboa

Será possível fazer algo semelhante em Portugal? Focando-nos em Lisboa, a estação rodoviária do Campo Grande permite o acesso, em terreno plano, às principais faculdades da cidade, bem como às suas zonas de negócios. No plano ferroviário, a Linha de Cintura rasga o centro da cidade e permite iniciar a deslocação de bicicleta em pontos centrais e de acesso rápido a quase todas as zonas da cidade. Acresce o facto de que o plano apresentado por Fernando Medina contempla a construção de ciclovias pop-up, com acesso a toda a cidade, a partir destas estações. No Porto, existe também uma Linha de Cintura que se encontra inexplorada.

A Linha de Leixões, actualmente apenas utilizada para transporte de mercadorias, passa por zonas densamente povoadas ou de elevado interesse, como as cidades de Matosinhos e Leça da Palmeira, o pólo da Asprela e Hospital de São João, com ligação a Ermesinde e Campanhã, e cruzando pelo caminho quatro linhas de metro. Uma abertura estruturada da linha ao transporte de passageiros, por si só, traria inegáveis benefícios, tal como evidenciado por um estudo recente encomendado pela Câmara de Matosinhos. Aliando-se à mobilidade suave, o potencial desta linha seria amplificado, dado o seu acesso a zonas de enorme importância para a vida e economia da região e a orografia relativamente plana das zonas que atravessa.

Estacionamentos para bicicletas, com ligação à ferrovia

Neste momento, à semelhança de outras cidades europeias, a rede GIRA de Lisboa tem tido sucesso em satisfazer as necessidades de deslocação dos seus cidadãos. Apresenta também, expectavelmente, potencial em transportar os utilizadores das estações referidas até ao seu local de trabalho. Porém, apesar de consistir numa boa solução inicial, tal sistema não será suficiente para satisfazer volumes de procura mais elevados.

Alguns países europeus recorrem à construção de parques de estacionamento para bicicleta junto, ou dentro, das estações de comboio. Especialmente na Bélgica, Dinamarca e Países Baixos, é comum ver centenas ou milhares de bicicletas estacionadas nas suas estações.

Este último é novamente referência, desta vez na construção de estacionamento nas suas estações. Encontra-se em Utrecht o maior parque de estacionamento de bicicletas do mundo, mas por todo o país existe infraestrutura de menor dimensão com os mesmos elevados padrões de qualidade.

Seria interessante montar um projeto-piloto em Portugal, não inspirado pela sua dimensão mas pela qualidade apresentada e pela utilidade que a infraestrutura aporta. Em Lisboa, a estação de Entrecampos apresenta, graças ao espaço disponível dentro da mesma e à sua ligação à rede ciclável, condições para acolher tal infraestrutura. De momento, apresenta somente um pequeno estacionamento exterior com muito poucas semelhanças com o modelo de Utrecht. Porém, dado o aumento na utilização de bicicleta, tanto esperado como ambicionado pela Câmara Municipal de Lisboa, a execução de tal projeto, inicialmente para efeitos de teste, parece encaixar como uma luva na estratégia de futuro da mobilidade para as nossas cidades.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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