Morreu Vicente Jorge Silva (1945-2020): um jornalista exigente que fez história no jornalismo

Foi jornalista, quis ser cineasta, experimentou ser político. O primeiro director do PÚBLICO morreu na madrugada desta terça-feira. O corpo estará em câmara ardente a partir das 18h nas Capelas Exequiais da Basílica da Estrela, em Lisboa

O primeiro director do PÚBLICO, Vicente Jorge Silva, morreu na madrugada desta terça-feira. O velório realiza-se a partir das 18h nas Capelas Exequiais da Basílica da Estrela, em Lisboa. Quarta-feira, haverá uma pequena cerimónia para a família. O cortejo fúnebre seguirá às 16h para o crematório do Cemitério dos Olivais.

Quem quiser fazer a história da imprensa portuguesa não poderá deixar de falar nele. Relançou e dirigiu o Comércio do Funchal, criou e dirigiu a Revista do Expresso, co-fundou e dirigiu o PÚBLICO. E todos estes projectos foram inovadores, marcantes. Além do jornalismo, abraçou o cinema. 

Talvez o seu maior desafio profissional tenha sido o lançamento do PÚBLICO, que chegou às bancas no dia 5 de Março de 1990. Foi um dos momentos “mais dolorosos” da sua vida, segundo contou a Isabel Lacerda, numa entrevista publicada na revista Sábado, a 8 de Janeiro de 2008. “Aquilo devia ter saído em Janeiro, mas acabou por sair só em Março: não havia as máquinas para imprimir, a ligação entre Lisboa e Porto não estava pronta... Eu, que nunca tenho dores de cabeça, nos meses que precederam o lançamento tinha-as todos os dias. O meu estado natural era a enxaqueca.”

A ideia fora sua. Juntaram-se-lhe, em Lisboa, Jorge Wemans, Augusto M. Seabra, Henrique Cayatte, José Manuel Fernandes, José Vítor Malheiros, Nuno Pacheco e, no Porto, Joaquim Fidalgo e José Queirós. Todos jornalistas do Expresso. Queriam fazer um diário de referência, moderno, europeu. Andaram mais de um ano a discutir. Na introdução do Livro de Estilo do PÚBLICO, Vicente apresenta o que idealizaram: um jornal com um estilo próprio que “integra os grandes princípios fundadores do jornalismo moderno — adoptados pelos jornais de referência em todo o mundo, do The Washington Post e do The New York Times ao La Repubblica, El País, Le Monde ou The Independent — e uma nova sensibilidade para captar e noticiar os acontecimentos, que caracteriza um jornal como o Libération” .

Estava tudo a mudar. “O PÚBLICO nasceu num momento crucial de transição entre dois mundos: o mundo pré-Internet e o mundo pós-Internet, no centro nevrálgico de uma revolução tecnológica, cultural e social que alterou decisivamente o rumo das nossas vidas e hábitos quotidianos”, explicou, no editorial que assinou no 28.º aniversário do jornal, encarnando a figura de director por um dia. Era a sua idade ao mudar-se do Funchal para Lisboa. 

Vicente nasceu no Funchal no dia 8 de Novembro de 1945. Cresceu ao lado de um estúdio fotográfico, o Atelier Vicente's, hoje Museu de Fotografia da Madeira, criado pelo bisavô Vicente Gomes da Silva, em 1846. O avô Vicente Júnior fora fotógrafo. O pai, Jorge Bettencourt Gomes da Silva, era fotógrafo. O tio, Vicente Bettencourt Gomes da Silva, também era fotógrafo. E ele andava por ali, entre cenários, máquinas fotográficas, livros de técnicas fotográficas e mobiliário de atelier. O atelier intrigava-o. Era como se ele fosse a Alice e o atelier o País das Maravilhas.

Terá começado aí a sua paixão pelo cinema. Adorava assistir a matinées e soirées. Aos 15 anos, escrevia crítica de filmes para maiores de 17. Findo o 5.º ano (actual 9.º), o reitor do Liceu Nacional do Funchal, hoje Escola Secundária Jaime Moniz, convidou-o a deixar o estabelecimento. Se o pai o matriculasse, faria chegar informação comprometedora à polícia política.

Durante um par de anos, viveu fora do país. Trabalhou numa fábrica de cola em Paris, lavou pratos em Londres, carregou lixo e colchões num hotel de Bournemouth. Ainda foi jardineiro e cuidador de idosos antes de regressar à ilha. Decorria 1966. A Guerra Colonial travava-se em várias frentes e ele podia ter ido lá parar. Os maus ouvidos livraram-no do serviço militar obrigatório.

Uma forma de resistência 

“Eu acabara de fazer 21 anos e, uma noite, o Artur Andrade, contrabaixista no Casino, veio anunciar-nos, muito excitado, que tinha alugado o título de um jornal sem leitores que então se editava na Madeira.” O relato, feito a Tolentino de Nóbrega, está num artigo publicado no PÚBLICO a 2 de Janeiro de 2007. “O jornal chamava-se Comércio do Funchal, um título ingrato, mas o nosso pequeno grupo percebeu que estava ali a oportunidade com que sempre sonháramos desde os tempos das páginas juvenis e de ‘artes e letras’ que fôramos publicando na imprensa local. Era a oportunidade de termos um jornal nosso, contra o paroquialismo sufocante e a fealdade gráfica dos outros jornais regionais. Imprimimo-lo em papel cor-de-rosa para sublinhar a diferença.”

O meio era pequeno. Vicente e os amigos conseguiam negociar com os censores, que bem conheciam. “Ousávamos publicar coisas que seriam quase impensáveis na imprensa continental e isso mobilizou a atenção de amigos mas também de inimigos”, disse ainda. Por causa de uma edição inspirada pelo Maio de 68, o jornal foi suspenso durante uns meses. Nesse embalo, ganhou leitores no território continental. Chegou a vender 15 mil exemplares, algo extraordinário na época.

Ao apresentar o livro Vicente Jorge Silva — Conversas com Isabel Lucas (Temas e Debates, 2013), o historiador Pacheco Pereira, reconhecendo-o como uma figura histórica do jornalismo, destacou essa “experiência madeirense”: “O que tinha de diferente o Comércio do Funchal — e essa diferença valorizou-se com os anos —​ é que era único no sentido de que correspondia a uma área da esquerda radical, mas que não era sectária. [Na época] isso praticamente não existia em lado nenhum, a não ser mesmo em vésperas do 25 de Abril de 1974.”

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Uma cultura da exigência

A seguir ao 25 de Abril de 1974, que derrubou a ditadura e, com ela, a censura prévia, Vicente mudou-se para Lisboa. Tornou-se jornalista do Expresso. Foi chefe de redacção e director adjunto. Criou e dirigiu a Revista, reservando um espaço inusitado para a cultura e para o internacional. “Foi ela que puxou o jornal para cima numa altura de um cinzentismo absoluto na imprensa portuguesa”, salientou, na já referida entrevista à Sábado. “Aí o meu grande companheiro foi o Mega [Ferreira].”

Custou-lhe sair do Expresso. Tinha uma grande ligação afectiva ao jornal. Ainda apresentou o projecto do diário a Francisco Pinto Balsemão antes de ir à Maia apresentá-lo a Belmiro de Azevedo, então presidente da Sonae. No dia 2 de Maio de 1989 estavam ambos a apresentar a ideia em conferência de imprensa. “[Belmiro] mostrou-se logo convictamente interessado”, declarou ao jornal i, a propósito da sua morte, em 29 de Novembro de 2017. “Ele tinha lucidez, percebeu que iria dar prestígio à Sonae.”

A primeira capa fazia referência à sucessão de Álvaro Cunhal no PCP e a um jogo disputado pelo FC Porto e pelo SC Sporting. Mas não é essa a sua capa de eleição. Em Setembro de 2017, quando lhe lançaram esse desafio, escolheu, sem hesitar, uma que combina a frase “Obrigado, Gorbatchov” com um grande plano do antigo dirigente soviético. Era 25 de Dezembro de 1991. “O homem que descongelara a História anunciava nesse dia a sua demissão de Presidente de uma União Soviética em extinção. E sentimos o dever imperioso de assinalar um acontecimento sem precedentes na nossa vida de jornalistas. Escolhemos uma capa que dispensava elementos noticiosos.”

Logo no início dessa década, Mário Soares (1924-2017), então Presidente da República, quis atribuir-lhe o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Recusou e até escreveu um editorial a defender que os jornalistas deviam dispensar tais honras. Isso não o impediu de, mais tarde, integrar o grupo que reclama à Presidência da República a Ordem da Liberdade para Tolentino de Nóbrega (1952-2015).

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Vicente Jorge Silva DANIEL ROCHA

Não fugia a uma polémica. Um dos seus editoriais deu origem a uma expressão que perdura até hoje: “Geração rasca.” Viu, em fotografias captadas por Luís Ramos num protesto estudantil em frente da Assembleia da República, jovens a mostrar o rabo. E tudo lhe pareceu de uma “vulgaridade impressionante”. No editorial de 5 de Maio de 1994, perguntava se o país estaria “a assistir ao nascimento de uma geração rasca”, que teria transformado “os seus cortejos num desfile de palavrões, cartazes e gestos obscenos, piadas de caserna ou trocadilhos no mais decrépito estilo das velhas ‘repúblicas’ coimbrãs”.

Cultivava a exigência. “Eu era muito exigente e frontal com as pessoas, mas também queria que fossem exigentes e frontais comigo”, disse a Isabel Lacerda. Ficaram célebres as suas discussões inflamadas. “O PÚBLICO deixou-me num estado de stress muito grande. Eu vivia demasiado aquilo. Deitava-me e acordava a pensar no jornal. Mas havia uma grande democracia interna: as pessoas também me podiam chamar à pedra.”

Experiências no cinema e na política

Saiu do PÚBLICO para se dedicar à sua primeira paixão: o cinema. “Estava um bocado cansado, para ser franco”, confessou a Isabel Lucas, numa entrevista de vida publicada no Semanário, em 2 de Agosto de 1997. “Já tinha muitos anos de jornalismo. Talvez com excessivo protagonismo nas iniciativas que tinha ajudado a levar por diante no Comércio do Funchal, na Revista do Expresso e no PÚBLICO. É óbvio que houve uma situação complicada no PÚBLICO. Os resultados de expectativas financeiras do jornal não se concretizaram tão rapidamente como eu desejaria e como os accionistas também esperavam.”

Realizou a primeira longa-metragem, que foi muito mal recebida pela crítica: Porto Santo, com fotografia de Mário de Carvalho e interpretação de Leonor Silveira, Beatriz Batarda e Ana Zanatti. Já tivera algumas experiências, ainda que mais curtas — O Limite e as Horas (1961), O Discurso do Poder (1976), Vicente Fotógrafo (1978), Bicicleta — Ou o Tempo Que a Terra Esqueceu (1979), A Ilha de Colombo (1997). E ainda teve outra, mais tarde: o documentário As Ilhas Desconhecidas, inspirado no livro de Raul Brandão, para a RTP1 (2009). São quatro episódios de 50 minutos cada um.

Pelo meio, fez uma curta incursão na política. Chegou a filiar-se no Partido Socialista e a ser eleito pelo círculo de Lisboa. A experiência, que teve entre 2002 e 2004, estava Durão Barroso à frente de um Governo de coligação PSD-PP, mostrou-lhe que não tinha vocação para a vida político-partidária. O jornalismo ainda lhe parecia o melhor sítio para fazer intervenção cívica.

Ao receber o prémio Gazeta de Mérito, em 2015, discursou: "É preciso acordar antes que seja tarde. É preciso voltar às raízes da inquietação e inconformismo do verdadeiro jornalismo. […] Num tempo propício à ansiedade, à angústia e à desorientação, [...] é preciso que o jornalismo desperte da sua letargia auto-satisfeita ou da complacência com os instintos rudimentares do populismo. A pedagogia da verdade dos factos, a objectividade possível para além das fixações ideológicas, a paixão do civismo que faz os homens melhores e as sociedades mais esclarecidas, a libertação das garras do baixo comércio das vulgaridades, tudo isso é essencial para o jornalismo encontrar novas razões urgentes de existir neste planeta tão perturbado.”

Foi colunista no Diário Económico, no Diário de Notícias e no Soantes de voltar ao PÚBLICO. No seu artigo de torna-viagem, escreveu: “Quando David Dinis [então director do jornal] me convidou a regressar, aceitei logo, com alegria. E quando visitei a redacção, que não frequentava desde esse tempo, vi-me envolvido numa onda de afecto intenso, emocionado, que pude partilhar com aqueles que haviam trabalhado comigo e outros que tinham chegado depois da minha partida.”

Nunca se desligou do PÚBLICO. E nunca se desligou da ilha. Enquanto pôde, andou entre Lisboa e o Funchal. Na já mencionada entrevista que deu em 1997, Isabel Lucas perguntou-lhe como imaginava os seus últimos dias. “Numa cabana à beira-mar”, respondeu. “Imagino-me a escrever nos últimos dias e a morrer durante a noite, calmo. Imagino a minha mulher e os meus filhos. O Miguel, o Vicente e a Laura. Ouço o mar ao fundo. Como se fosse um filme.”

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