Cidadania e Desenvolvimento: uma polémica hipócrita

O que me incomoda mesmo é que as escolas tenham deixado de ser, nessa vivência quotidiana, espaços de Democracia e Tolerância e que acerca disso quase ninguém se indigne.

Tenho evitado escrever sobre a polémica em torno da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento porque acho que, em termos técnicos e “científicos”, a polémica se tem caracterizado pelo que se pode classificar como “parvoíce” com uma fortíssima base ideológica. E não estou a brincar com o assunto, muito pelo contrário.

Em dois pontos eu esclareço a minha posição acerca da coisa em si:

  • Sou favorável à abordagem na escola, de modo efectivamente transversal e principalmente através dos exemplos da prática da vida quotidiana, de alguns dos temas mais polémicos que despertam a fúria a alguns encarregados de educação e a alguns jarretas políticos.
  • Acho que esses temas não devem ser leccionados de forma doutrinária e com uma avaliação formal numa disciplina equivalente à Matemática, História ou Inglês, mas sim de uma forma que fuja ao tradicionalismo da opção encontrada.

Dito isto... parece que fico naquela terra de ninguém que poucos aprovam, porque acho que a disciplina é um acrescento curricular sem grande sentido, nascida de uma espécie de capricho de quem pode decidir estas coisas e desenha o currículo à medida dos seus humores, mas não me choca que se abordem na escola pública temas como a tolerância, a diversidade religiosa ou mesmo a identidade de género, em especial a partir do 2.º ou 3.º ciclo, discordando das teses da “lavagem ao cérebro”, porque, tirando algumas criaturas dogmáticas que até podem escrever na comunicação social, mas raramente dão aulas, a generalidade dos docentes da disciplina opta por uma abordagem sensata dos temas. A menos que seja aquela parte da Educação Financeira, que me faz sempre rir muito.

Mas esta terra de ninguém é onde está essa maioria dos docentes que leccionam a disciplina e que ficam calados perante um conflito que não existiu no tempo próprio e apenas surgiu porque um governante decidiu meter a colher onde não devia, tomando uma decisão que, não sendo formalmente peixe nem carne, deu origem a que se criasse uma espécie de situação de “delito de opinião” e um encarregado de educação se apresentasse como “mártir” do politicamente correcto, quando o que esteve em causa foi o chumbo administrativo de dois alunos com uma fundamentação que nunca vi usada para qualquer outra disciplina.

A realidade conhecida por pais e professores é que, com ou sem “objecção de consciência”, há alunos que faltam que se fartam a disciplinas de que não gostam e, no fim, se tiverem as “positivas” necessárias para transitarem no Ensino Básico, não ficam retidos, porque o enquadramento legal é que essa é uma situação de excepção. Um aluno “chumba” a uma disciplina (ou duas) e passa sem problemas. Pode ser História, pode ser Inglês, até pode ser a sacrossanta Matemática e ninguém recorre e mete governantes à mistura, com despachos ambíguos que dão cobertura a tudo e o seu contrário.

O que significa que a disputa em presença surge de forma tardia e pelos piores motivos, envolvendo gente que nunca se dignou discutir o assunto até atingir um elemento da “sua” clique ideológica ou provocar manifestos contra a “sua” disciplina. E agora surgem por aí as mais inflamadas posições, raras vezes com fundamentação que quem lecciona a disciplina como eu reconhece como vagamente ajustada ao que se passa nas aulas.

A aprendizagem da Cidadania é um imperativo? Sim, claro, e faz mesmo muita falta desde tenra idade.

A Cidadania tem uma definição unívoca e doutrinária? Não deveria, porque isso quase é uma contradição nos seus termos.

A polémica em decurso é mesmo sobre “Cidadania e Desenvolvimento”? Não, de forma alguma, é quase em exclusivo sobre um ou dois dos seus conteúdos programáticos mais “fracturantes”.

Quem se tem pronunciado sobre a questão tem motivações de natureza cívica ou pedagógica? De modo algum, limitam-se a (re)agir de acordo com a sua agenda política e os seus credos religiosos e ou ideológicos.

Pessoalmente, tenho reservas em relação à criação de disciplinas do tipo doutrinário, com conteúdos ajustados aos interesses e crenças deste ou aquele grupo dominante na governação da Educação. Mas acho que a escola é um local para a formação dos futuros cidadãos, em especial quanto a valores como a Democracia e a Tolerância. Que devem ser transmitidos em especial a partir do exemplo e da sua vivência quotidiana.

O que me incomoda mesmo é que as escolas tenham deixado de ser, nessa vivência quotidiana, espaços de Democracia e Tolerância e que acerca disso quase ninguém se indigne. Dos dois lados desta polémica repleta de hipocrisias.

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