Com a covid-19, a indústria da moda também mudou e nunca mais será a mesma

O impacto da pandemia em Portugal não foi diferente e uma maior aposta no meio digital foi uma bóia de salvação para os designers. A ModaLisboa começa nesta quarta-feira.

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Uma maior digitalização dos eventos e das criações dos designers foi uma das soluções da indústria da moda Francisco Romao Pereira

Novas colecções por exibir, histórias de criatividade por contar, produções em pausa — assim se encontra a indústria da moda que teve de se virar para o digital e tentar reencontrar a sua essência perante as adversidades causadas pela pandemia da covid-19. A mudança que já estava em curso chegou assim mais depressa do que se esperava: é agora colocada em perspectiva a lógica dos desfiles e das colecções sazonais. a ModaLisboa começa nesta quarta-feira num misto entre o que se fazia antes e o que a pandemia obriga a inovar.

​“É com entusiasmo e é com coragem que temos, todos os dias, enfrentado as dificuldades, porque representamos a voz de um sector. A indústria da moda, os designers, os criadores, a moda de autor, a
moda seriada, a moda sustentável, aquela que é a mais certa de consumir, porque achamos que temos de proteger, cada vez mais, os valores locais”, escreve Eduarda Abbondanza, presidente da Associação ModaLisboa, no comunicado de apresentação do evento.

Por ano, em cidades como Londres, Paris ou Milão são apresentadas duas grandes colecções — Primavera/Verão e Outono/Inverno –, cujas peças só ficam disponíveis para o cliente final seis meses mais tarde. Nos últimos anos são cada vez mais as marcas de luxo que põem em causa esta sazonalidade e a forma como se vendem as colecções. Portugal não é excepção. Por cá, também Ricardo Preto, designer de vestuário e acessórios — que apresenta a sua colecção na quinta-feira, no jardim Amália Rodrigues, no topo do Parque Eduardo VII —, com um pé no comércio internacional há vários anos através da Rustans (uma plataforma de venda online), acredita que “a ideia de sazonalidade, novidade e de luxo vão ficar muito abaladas com o novo cenário”. O designer de calçado e malas Luís Onofre, que apresenta o seu trabalho no Portugal Fashion, partilha da opinião de que “as colecções deviam ser apresentadas no tempo em que são vendidas”, acrescentando que “não há muita lógica em criar expectativa nos clientes finais quando só passados seis meses é que poderão ter as peças em loja física ou virtual”.

Já o jovem criador de moda Gonçalo Peixoto — que fará desfilar o seu trabalho no domingo, no jardim do Pavilhão Carlos Lopes — olha para as duas possibilidades com igual relevância. A colecção sazonal ajuda a criar tendências e a “colecção de agora ajuda a perceber as necessidades do cliente”. Embora o rumo que a indústria seguirá durante o próximo ano seja uma incógnita, o designer vê esta mudança como algo “positivo”.

Lançar sem restrições

Outubro marca o início das apresentações. A ModaLisboa e o Portugal Fashion, as duas grandes plataformas de moda nacionais, afirmam que deram espaço aos designers a elas alocados para lançarem colecções sem restrições. São livres de mostrar as que ficaram em stand-by em Março ou de criar novas, se assim entenderem. “Se calhar hoje em dia essa mudança [alterar o calendário sazonal] tem de acontecer, porque nem todos os designers, e aqui estou a falar dos portugueses, têm capacidade para fazer duas colecções ao ano”, avança André de Attayde, gestor de comunicação do Portugal Fashion.

Com a pandemia, os ateliers pararam, o fornecimento de materiais está limitado e as encomendas foram adiadas ou canceladas. Os desfiles, nestes eventos, têm como propósito que haja um feedback imediato do público às criações e, posteriormente, possíveis compras. 

Um dos caminhos pelo qual os criadores de moda optaram foi pela aposta na digitalização das suas marcas. Mas mesmo com o digital a apresentar-se como uma luz ao fundo do túnel, o lado físico deste mundo “continua a ser importante”, embora seja necessário “alterar alguns paradigmas”, defende André de Attayde. “Em vez de fazer eventos gigantescos — uma sala com mil pessoas —, reduzir esse número e ter presentes clientes dos designers, pessoas especiais para eles, jornalistas nacionais e internacionais, compradores de colecções e profissionais do sector”, sugere. 

“Claramente o digital irá acontecer, mas estamos ansiosos, sendo que, no passado, tudo aquilo que foi digital não foi um sucesso grande. O digital não consegue ainda oferecer uma emoção da qual a moda necessita”, refere Eduarda Abbondanza ao PÚBLICO.

Digitalização, uma luz ao fundo do túnel

Gonçalo Peixoto encontrou numa colecção-cápsula uma das soluções para ultrapassar as dificuldades dos meses que se seguiram a Março. Esta colecção inclui “várias peças de Verão mais acessíveis”, de forma a chegarem “a um público mais amplo”, lembra ao PÚBLICO. “A estratégia de comunicação também foi adaptada e foi exclusivamente online, porque as pessoas estavam mais tempo e mais atentas ao telemóvel”, acrescenta.

Ricardo Preto teve 80% da colecção cancelada, produzindo apenas as peças essenciais do merchandising da sua marca. Apesar de já estar presente no meio digital e de a aposta nesta área ser uma ideia prévia à chegada da pandemia, as circunstâncias actuais fizeram com que as compras online aumentassem 60%, ajudando a colmatar o prejuízo das encomendas canceladas e a olhar com outros olhos para o mundo digital. “Tentámos perpetuar no Instagram a relação próxima e íntima que desenvolvemos com os nossos clientes e tem ajudado a descobrir pessoas interessadas em todo o mundo, o que é bastante recompensador”, afirma.

Da mesma forma, também Luís Onofre teve uma redução acentuada das vendas nas suas lojas físicas — 57% em Lisboa e 47% no Porto. Inversamente, “o online cresceu 120%, o que significa que no total houve uma quebra de 9% em relação ao ano anterior”. “Acabou por não ser tão mau, mas leva-nos a reflectir para onde vão as lojas, em que sentido temos de orientar o nosso negócio, para que possamos acompanhar os tempos modernos e a incerteza das pessoas”, refere.

De forma geral, os criadores encontram-se num momento de incerteza, não sabendo se os clientes quererão manter o modelo actual de compra online ou voltar ao antigo, de experimentarem as peças em loja. Ainda assim, todos concordam que a indústria da moda está a passar por uma mudança para a qual dificilmente haverá retorno. A digitalização do meio veio para ficar sim, contudo, os eventos físicos e o contacto com as pessoas que seguem o seu trabalho continuam a ser factores relevantes.

“O impacto surround que temos de toda a parafernália que está a assistir e que interage é importantíssimo. Nunca vai deixar de existir. Enquanto as coisas estiverem assim temos de arranjar soluções”, concede Luís Onofre, questionando a possibilidade de fundir as duas vertentes — o físico e o digital.

Para Gonçalo Peixoto o digital é importante e ganhou um grande foco com a chegada da pandemia, ainda que não substitua o evento físico. “Ajuda-[nos], a nós criadores, a interagir com os nossos clientes e buyers, com os jornalistas e a ter o feedback na hora. Além disso, ver as peças ao vivo é muito diferente de ver um desfile online.”

O futuro chega em Outubro

Seria de pensar que uma maior digitalização fosse sinónimo de uma pior situação para os modelos, uma vez que com a redução do número de desfiles e de outro tipo de trabalhos presenciais a realizarem-se, o volume de trabalho também diminui.

Porém, Hélio Bernardino, presidente da agência Elite Lisbon, afirma que nos últimos meses as candidaturas aumentaram significativamente. “Disparou mesmo muito. Quase que duplicou. Se normalmente por semana recebemos umas 80 ou 100 candidaturas, houve semanas que foram para o dobro”, revela o profissional.

Ainda assim, este aumento nas candidaturas não se traduz num maior número de agenciados, até porque, de modo a cumprirem todas as medidas de segurança, a agência só está a fazer dois castings por dia, em dias alternados. Além disso, os trabalhos disponíveis são muito menos.

Segundo Hélio Bernardino, foi graças ao digital que a agência sobreviveu. Os modelos continuaram a ser contratados para sessões fotográficas de marcas de vestuário com venda online. “Acho que nos próximos tempos [o digital] vai ser uma peça fundamental nos negócios e nas agências.” 

Agora em Outubro será possível avaliar a forma como o digital pode ou não ajudar os eventos físicos no novo ciclo da moda que se vai iniciar em Portugal. As datas da ModaLisboa e do Portugal Fashion já foram anunciadas — 7 a 11 para o primeiro e 15 a 17 para o segundo —, assim como alguns pormenores sobre o formato em que irão decorrer. Aquilo que anunciam é que será um híbrido, numa mistura entre o físico e o digital.

A nova edição da ModaLisboa decorrerá ao ar livre, nos jardins do Parque Eduardo VII. O evento contará com um momento físico, com os habituais desfiles e convidados, e apresenta um conjunto de novidades digitais: através de uma aplicação para o smartphone e para a smart tv será possível assistir em live stream ao evento e ainda aceder a um conjunto de actividades exclusivamente digitais. Há ainda a possibilidade de aquisição imediata na loja online de algumas peças desfiladas. Sobre o Portugal Fashion pouco se sabe, tendo sido apenas revelado que o evento terá lugar na Alfândega do Porto.

Eduarda Abbondanza prevê “um back to basis, um começar do zero, menos gente, menos apresentações” para o futuro físico da indústria da moda. “Quando há uma apresentação é incontornável. Tem de valer, porque de repente já não valia. Os desfiles eram em todo o lado, com toda a gente. Já não havia o sentimento especial.”

Ricardo Preto afirma que “a moda tem uma imagem muito progressista, mas na realidade é uma indústria muito velha, tradicional e pesada, presa a um formato e a fórmulas a que só agora se dá maior atenção”, prevendo “uma mudança para algo mais evoluído e flexível”.

Texto editado por Bárbara Wong

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