Na rentrée, o grande consumo tem que se preparar para um longo inverno

O paralelismo com a crise de 2011 parece evidente. Mas se tal comparação pode gerar algum otimismo — se recordarmos que a nossa economia, naquele período, recuperou de forma significativamente mais rápida do que as expectativas iniciais —, vale a pena lembrar que duas das “muletas” dessa recuperação — turismo e comércio externo — dificilmente nos servirão de apoio nos anos mais próximos

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Nuno Ferreira Santos

Estamos a dias do que se convencionou chamar de rentrée, no final de um verão estranho de um ano completamente atípico. Uma rentrée em que a única certeza é a névoa de incerteza que nos envolve.

Era óbvio, desde o início desta crise pandémica, que quanto maior fosse a sua duração, mais difícil seria fazer a reignição da economia. E as consequências estão a ser desastrosas: nunca tanto se gastou ou se irá gastar para tentar apagar alguns dos muitos fogos que esta crise provocou ou ainda provocará, nunca tão pouco se produziu e tão pouca riqueza (e receita fiscal) se gerou à boleia desta crise de saúde pública. E este limbo em que vivemos tem vindo a gerar uma crescente inércia, uma “humidade” pegajosa que vai enchendo de “ferrugem” a nossa economia e a nossa sociedade. Uma coisa é certa: a situação piorará ainda muito antes de voltar a melhorar.

O paralelismo com a crise de 2011 parece evidente. Mas se tal comparação pode gerar algum otimismo — se recordarmos que a nossa economia, naquele período, recuperou de forma significativamente mais rápida do que as expectativas iniciais —, vale a pena lembrar também que duas das “muletas” dessa recuperação — turismo e comércio externo — embora por razões diferentes, dificilmente nos servirão de apoio nos anos mais próximos.

O setor do grande consumo sofreu um forte embate no início da pandemia, com uma rápida aceleração das compras para fazer face ao incerto período de confinamento. A economia quase parou, mas as famílias mantiveram uma parte significativa dos seus padrões de compra, permitindo ao grande consumo ser uma das áreas mais ativas e resilientes destes últimos meses. Mas os números são como o algodão e desde há várias semanas confirmam uma desaceleração das vendas.

A experiência das crises recentes permite antecipar algumas facetas da evolução previsível no mercado. Num primeiro momento haverá uma manutenção dos níveis globais de consumo, mas com uma transferência sensível do consumo fora-do-lar para consumo dentro de casa. Diminuirão as refeições no exterior, aumentarão as refeições confecionadas em casa, mesmo que para consumir no local de trabalho ou na faculdade. Ganha, em geral, o retalho moderno, perde especialmente o canal Horeca.

Num segundo momento, face à redução do rendimento disponível, dá-se uma compressão do consumo em valor. Compro os mesmos iogurtes, os mesmos litros de água ou as mesmas embalagens de detergente da louça, mas de gama inferior ou de mais baixo preço, para, mais à frente, com o avolumar das dificuldades económicas, o retrocesso se verificar não apenas em valor, mas também em volume.

Este ciclo foi percetível na crise da troika e alimentou diversos movimentos do lado das marcas e do retalho: a alteração das gamas de produto, a multiplicação das referências de marcas de distribuidor, a explosão do fenómeno promocional, a redução clara da inovação-produto ou o aumento dos investimentos em preço e prateleira, por contrapartida das compressões ao nível de inovação ou comunicação, foram alguns exemplos. O consumo patriótico assumiu forte protagonismo e a competição entre retalhistas foi levada ao rubro. Com o aumento do fenómeno do “desconto” foi difícil perceber a diferença entre retalhistas convencionais e insígnias de hard discount. O fenómeno promocional permitiu aos fabricantes não perder tanto mercado como o expectável para as vulgarmente chamadas “marcas brancas”.

Mas nada disto impediu que o mercado, visto pelo somatório dos seus múltiplos canais, tivesse sofrido um impacto fortemente negativo, em volume e valor, que motivou dificuldades em todos os elos da cadeia de abastecimento e muita fricção nas relações comerciais que se estabeleceram no seu seio, colocando ainda mais visíveis os desequilíbrios negociais existentes, e motivando, nos últimos anos, um conjunto de intervenções legislativas que tentaram minorar os efeitos perniciosos desses desequilíbrios.

Mas, por certo, haverá novas facetas na crise que estamos atualmente a viver. Desde logo o já referido impacto negativo gerado pela implosão do turismo ou a emergência da compra online, mas também a forma como o consumo é impactado pelos receios dos consumidores em termos de saúde e mobilidade, as consequências da vulgarização e consolidação de fenómenos como o teletrabalho que podem provocar mudanças radicais na configuração dos principais centros urbanos, o desenvolvimento de múltiplos conceitos e produtos na área da higiene e proteção pessoal ou as restrições a todos os eventos de massas, sempre indutores de momentos de aceleração do consumo.

É pois fundamental que fabricantes, marcas e retalhistas saibam superar esta crise, cooperando entre si para impedir o colapso do mercado e desenvolvendo a capacidade de oferecer conjuntamente as soluções mais adequadas ao consumidor, o qual, no quadro de dificuldades que se adivinham, será ainda mais consciente, frugal e racional, exigirá as melhores propostas de valor para os produtos que consome e desenvolverá um “radar” que o levará a rejeitar as tentativas de o fazer comprar “gato por lebre”. E que o Estado saiba também exercer a sua função regulatória, monitorizando e fiscalizando regularmente o funcionamento de mercado, apadrinhando e acarinhando os esforços consistentes de autorregulação.

Parece, pois, que esta rentrée traz nuvens negras e carregadas no horizonte, que o regresso à normalidade surge ainda como um sonho longínquo e que, pelo menos no setor do grande consumo, os desafios serão fortes e de elevado risco.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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