Ódio do ódio, igual a ódio

Cada vez mais, o clima político amplifica ódios, ou pelo menos torna esses ódios mais visíveis, porque os extremos opostos tendem a retroalimentar-se.

Eventos relacionados com extremismo, intolerância e ódio mobilizando cidadãos comuns têm sido noticiados nos últimos tempos um pouco por todo o lado, incluindo em Portugal. As causas são variadas, mas há uma em particular que salta à vista: a normalização do ódio na política. Cada vez mais, o clima político amplifica ódios, ou pelo menos torna esses ódios mais visíveis, porque os extremos opostos tendem a retroalimentar-se. A radicalização de posições e a possibilidade de as amplificar através dos meios de comunicação são hoje mais fortes do que a capacidade de as contrariar.

Faz parte da estratégia de alguns políticos dividir, instrumentalizar o medo e exagerar para provocar reacções e no contexto actual esta estratégia parece estar a funcionar. E funciona não só por causa das crises, mas também porque a política convencional tem sido incapaz de responder adequadamente. Tem funcionado tão bem porque a resposta ao extremismo tem sido mais extremismo. Ou seja, a resposta ao ódio tem sido mais ódio. Um bom exemplo é o recente debate sobre o racismo em Portugal. O tema está a ser instrumentalizado por partidos e figuras que procuram visibilidade política e exposição mediática. As respostas têm surgido na forma de contramanifestações e declarações polarizadoras, o que não contribui para a diminuição (idealmente, a total erradicação) do racismo na sociedade. Pelo contrário este “diálogo” exacerba as posições dos dois lados e faz escalar o clima de ódio. A mitigação das atitudes racistas deve ser feita sim, de forma reiterada.

As atitudes de ódio discriminam, diminuem, desumanizam, demonizam um “outro”, que pode ser um grupo ou um indivíduo. Estão relacionadas com factores como a segurança e a identidade, que são também fortes determinantes do comportamento. A percepção de uma ameaça desencadeia reacções que assentam em narrativas divisivas de “nós vs. eles”, reforçando assim o sentido de identidade e legitimando eventuais acções mais extremas de resposta. Os discursos políticos populistas disseminam, alimentam e contribuem para a normalização deste tipo de atitudes. Mas também os ataques e o tom negativo da comunicação política em geral ajudam a normalizar o que devia ser a excepção. Uma das formas de medir o impacto do ódio num determinado momento é avaliar se está contido em grupos radicais periféricos ou se está disseminado de forma mais generalizada pela sociedade. A transferência do radicalismo para o mainstream deve ser evitada e aqui é caso para dizer que a prevenção é o melhor remédio.

Crises, percepções de ameaças à segurança e identidade, mas também o clima generalizado de crispação política, potenciam a aceitação e consequente normalização deste tipo de discursos e atitudes. Mas a normalização do ódio também passa pelos meios de comunicação. A cobertura jornalística pode contribuir para transportar o radical e o ódio para o mainstream, mas estas situações têm sido reforçadas sobretudo pelas redes sociais. A visibilidade do ódio e o efeito bola de neve das redes sociais é hoje muito preocupante. Apesar de a liberdade de expressão poder ser legitimamente limitada se se provar ser prejudicial, tentativas de controlo e monitorização têm-se afigurado contraproducentes não só pelas normas democráticas e pelos interesses comerciais das plataformas de redes sociais, mas também porque a Internet oferece várias alternativas para publicar e disseminar todo o tipo de conteúdos sem filtros.

Existem, de facto, várias formas de contornar os constrangimentos. Por exemplo, grupos proibidos numa plataforma reaparecem imediatamente sob outro nome ou noutra plataforma. Assim que o Twitter começou a fechar contas por causa de conteúdos a apelar ao ódio e à violência, ou relacionadas com teorias de conspiração e desinformação, os grupos visados rapidamente mudaram para o Facebook e para o Instagram. A mudança levou mesmo ao crescimento de alguns destes grupos, por causa dos algoritmos de recomendação do Facebook. Foi o caso dos grupos associados à teoria da conspiração QAnon, identificada pelo FBI como uma potencial ameaça terrorista doméstica, que defende que Donald Trump está a travar uma guerra secreta contra pedófilos e traficantes de crianças membros do partido Democrata e estrelas de Hollywood. Face ao crescimento exponencial destes grupos, o Facebook finalmente encerrou 790 deles há poucos dias. Mas há outras plataformas, menos conhecidas, como a Discord, que servem como rampa de lançamento e mobilização para estes grupos. O problema é mais grave quando as plataformas são privadas, como o WhatsApp.

Os grupos fechados são ideais para dizer o que se pensa realmente e ignorar o “politicamente correcto”, o que incentiva a expressão de ideias mais radicais, mas também de preconceitos e mesmo ataques, que seriam inaceitáveis noutros locais. Não é por acaso que o líder do Vox, Santiago Abascal, definiu o seu partido, como “o único partido que defende o que os cidadãos dizem no WhatsApp”. É sabido que a pertença a estes grupos tende a promover sentimentos de alienação e de ressentimento, que são acentuados pela dinâmica própria dos grupos cuja identidade emerge da interacção entre os seus membros e pode ser muito distinta da forma de agir dos indivíduos isoladamente.

Ainda que relutantemente e sobretudo por causa da pressão dos anunciantes, a maioria das plataformas de redes sociais tem vindo a implementar filtros e moderação para tentar reduzir os conteúdos associados a ódio, extremismo e violência. A filosofia destas plataformas assenta no direito fundamental da liberdade de expressão, mas surgiram numa altura em que a Internet era vista sobretudo como uma promessa de democratização. Muito mudou desde então e constatou-se que a Internet e em particular as redes sociais podem na verdade ter efeitos devastadores na democracia. Possíveis formas de lidar com estes problemas não podem assim passar só pela supressão da liberdade de expressão e pela censura dos conteúdos.

A monitorização em si também não resolve os problemas, não só porque transmite a ideia de vigilância própria de estados totalitários, mas também porque a estrutura das redes permite encontrar alternativas. Proibir grupos sem explicar de forma clara o porquê dessa decisão pode mesmo ter o efeito contrário, porque contribui para as estratégias de vitimização desses grupos, desperta solidariedades e não ajuda os seguidores mais incautos a compreender os motivos pelos quais determinado grupo ou conteúdo é considerado nocivo.

A solução tem sempre que passar por respostas eficazes aos problemas existentes de forma a neutralizar os efeitos do extremismo, pois sem isso não há censura e monitorização que impeçam os discursos mais extremos de se tornarem gradualmente normais. Passa também por transparência, eficácia, justiça e pelo restabelecimento de um clima de confiança nas instituições e nos processos democráticos. E está antes de mais nas mãos dos políticos mainstream, começando pela atenção que dedicam aos problemas das pessoas e pelo tom do seu discurso.

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