“Gravidez não é doença”

“Eh, eh”, dizem as pessoas em uníssono para a rapariga grávida, enquanto o relógio bate as 9h e o posto dos correios abre as portas. “Nós estamos em primeiro, onde é que você vai?”

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Lisboa, 31 de Julho, 8h30 no posto dos correios. Tenho uma encomenda para levantar, dois livros, ninguém estava em casa aquando da entrega e ontem, depois da hora de almoço, a fila para entrar não era apenas enorme, era inamovível. De modos que aqui estou eu, o posto abre às 9h e meia hora à espera não custa nada. 

Não obstante, já tenho três pessoas à frente: em primeiro na fila, um casal, aparentemente de reformados, ele aflito, ela acabada de chegar do mercado, saco na mão e o peixe já aos saltos na frigideira do pensamento; em segundo, um indivíduo magro com ar de 50 e muitos, fumador compulsivo a acender cigarros nervosos uns nos outros; em terceiro, um senhor cujo simpático sotaque brasileiro me indicou ter sido ele o último a chegar. 

Obrigado, respondo. E espero. Não passam dois minutos e uma jovem, pouco mais velha do que eu (os 40 são os novos 30), chega para, de modo afoito, se colocar à minha frente como se nada fosse, rapidamente copiada por uma senhora com a desculpa de estar ao sol. Mas como o calor e a falta de sombra distribuem as pessoas ao redor da entrada, é notório ser a grelha de partida determinada pela velocidade de cada um quando a porta abrir. Um por todos e cada um por si, portanto.

Mesmo antes das 9h já somos mais de 20 à porta quando chega um senhor com uma bengala aflita a segurar-se por tudo ao solo. Pede, por favor, para entrar em primeiro, nem se discute, seguido de uma rapariga notoriamente grávida, a qual não diz nada para se colocar atrás do senhor, com a bengala aflita.

“Eh, eh”, dizem as pessoas em uníssono para a rapariga grávida, enquanto o relógio bate as 9h e o posto abre as portas. “Nós estamos em primeiro, onde é que você vai?”. O gerente do posto dos correios, a controlar a porta, pede à rapariga que entre para de imediato retorquir à populaça: “Não vêem que está grávida?”

“Gravidez não é doença!”, responde o fumador compulsivo diante da populaça e a populaça anui e acrescenta: “Pois não, eu também já estive grávida e esperei sempre pela minha vez!”. E eu já não sei se entre sair de um país e entrar noutro o mundo não se virou ao contrário.

Não, ainda é o mesmo mundo, pelo menos de acordo com o gerente dos correios de dedo em riste para o sinal de prioridade na parede, incapaz de acalmar os ânimos da ignorância. Ignorância essa acirrada quando a rapariga grávida pede desculpa a todos em português do Brasil, ao mesmo tempo que aponta para a barriga. 

Enfurecidas, as pessoas arremetem contra a porta, batendo com as mãos e os punhos. O gerente, assustado, fecha a porta do posto à chave e não deixa entrar mais ninguém. Os insultos e as ameaças voam e a mulher pede ajuda para sair. O gerente ainda pergunta se não quer ser atendida, tem esse direito, mas ela, de lágrimas nos olhos, só se quer ir embora. Há uma saída pelas traseiras e o gerente ajuda-a a sair em segurança.

A consternação entre os funcionários é geral. Estupefacto, não tive reacção nem resposta para um comportamento tão primitivo como inesperado.

Passados cinco minutos, os ânimos acalmam e o gerente regressa para abrir a porta. “Uma pessoa de cada vez”, diz, sem acrescentar mais nada, de olhos cansados no chão. Ainda ouve umas bocas de um cliente que diz não ver de uma vista e espera na fila na mesma, mas o gerente, desiludido com a humanidade ou a falta dela, não responde. Entretanto, chega a minha vez, entrego a senha, recolho os livros e vou-me embora, também eu desiludido com a humanidade.

O comportamento acima descrito não tem justificação e não augura nada de bom, antes pelo contrário. Apesar de tudo, procuro ardentemente uma razão entre o tempo de confinamento, a doença, a falta de apoios sociais, o desemprego, o desespero e a ausência de futuro, futuro esse ausente mesmo se uma rapariga grávida opte por esperar na fila pela sua vez.

Com o prolongar desta doença assistimos à perda de direitos e respeito para com o outro nosso igual, não só por iniciativa de governantes mas das pessoas em redor, nas ruas, nos supermercados, nas paragens de autocarro, nas filas para os postos de correio. Com os nervos à flor da pele, a reacção diante de possíveis injustiças é imediata, é um ataque pessoal e meses de dor rapidamente tomam a forma da raiva nas mãos.

Nesta manhã assisti à raiva e não consigo encontrar justificação para a mesma. Teria a reacção sido a mesma se a grávida em questão fosse a irmã ou a filha de algum dos clientes na fila? Teria a reacção sido diferente se a rapariga falasse com um sotaque perfeitamente português e não brasileiro?

Nunca o saberei, mas desconfio. A ignorância continua a ser o maior dos males e vivemos no meio dela. Nunca como antes foi preciso ter tanto cuidado.

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