Um origami em forma de vagina para envergonhar quem recorre à prostituição: “Esta campanha é um insulto”

Campanha choca Movimento de Trabalhadores do Sexo e outros activistas. “É intencionalmente provocatória”, diz presidente da Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres.

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Campanha Exit, zona da Lapa, no Porto. Paulo Pimenta

O Movimento dos Trabalhadores do Sexo (MTS) repudia a campanha lançada pela Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres (PPDM). Considera insultuosa a ideia de fazer um cartaz com um origami que é uma nota de 20 euros, o preço que muitas prostitutas de rua cobram, a representar uma vagina e os dizeres: “Se tens de pagar, não vales nada”.

“Esta campanha é um insulto”, declara Margarida Maria, presidente do MTS. “Apresentam-se como feministas mas, com esta linguagem, estão a reduzir-nos à genitália. Usam a linguagem sexista que querem criticar. Objectificam as mulheres. Reduzem as trabalhadoras do sexo a vaginas andantes.” Tudo isso lhe soa “a misoginia e a transfobia”. “Há trabalhadoras trans sem vagina. Existem pessoas de todos os géneros a fazer trabalho sexual.”

A presidente da  PPDM, Ana Sofia Fernandes, já esperava causar polémica. “Esta imagem pretende ilustrar de forma gráfica a violência inerente ao sistema de prostituição, a objectificação da mulher e a mercadorizaçao do sexo”, diz. “A campanha é intencionalmente provocatória.” Irá sendo revelada, pouco a pouco, ao longo de um mês. Primeiro só o origami, segundo aquela frase, terceiro a imagem de uma mulher com uma etiqueta e os dizeres: “Se tens de pagar não vales nada porque és cúmplice de uma rede global de tráfico humano para exploração sexual.” E assim por diante. Sempre “com o objectivo de alterar o foco de quem está na prostituição para quem compra sexo.”

A PPDM, que representa o Lobby Europeu das Mulheres em Portugal, defende o modelo neo-abolicionista, também conhecido por modelo nórdico, que encara a prostituição como uma violação dos direitos humanos, olha para quem vende serviços sexuais como uma vítima e para quem os compra como um criminoso. A par da criminalização dos clientes, advoga um “plano nacional de prevenção e combate ao sistema de prostituição” e serviços de apoio à saída. Para as neo-abolicionistas, a prostituição nunca é uma opção. É sempre uma consequência de uma desigualdade, um reflexo de um conjunto de vulnerabilidades – “a pobreza é a força motriz”.

Aumento do estigma

A frente de combate à “lesbigaytransfobia” Panteras Rosa teve uma das maiores reacções de repúdio. “Um lixo que visa aumentar o estigma contra estas mulheres (não apenas sobre os clientes), feito por mulheres que nunca foram, nem serão (nem ouvem) trabalhadoras do sexo, num desejo de decidir por outras mulheres o que se acha (e se impõe) que é melhor para elas”, lê-se num longo texto publicado na sua página de Facebook.

Patrícia Martins, que faz parte do Feminismo Sobre Rodas, partilhou uma longa e crítica reflexão pessoal. “Não é dizer a um homem ‘não vales nada’ que ele vai parar de mandar a piropada, apalpar o rabo da colega, deixar de controlar o tamanho do decote da namorada, etc.. Acho que não é difícil de imaginar como esta imagem pode virar piada selfie machista, carregada de virilidade tóxica, a circular nos TikToks e Instagram.”

Existe um debate sobre a forma como o Estado se deve relacionar com o trabalhos sexual”, comenta aquela activista, por telefone. “Uma coisa é um debate. Outra coisa é o tipo de acções postas no terreno. Ao ver uma campanha destas na rua, como se sentirão as trabalhadoras do sexo? Parece-me que isto as coloca numa situação humilhante e que não é assim que os homens vão compreender que há comportamentos que não dignificam as mulheres.”

A campanha faz parte da segunda edição do projecto EXIT. Financiado pelo programa Cidadãos Activos, componente dos EEA Grants destinada a apoiar as organizações não-governamentais, tem a Islândia, o Liechtenstein e a Noruega como doadores e em Portugal é gerido pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação Bissaya Barreto.

A estratégia de “lobbying” e “advocacy” para promover o modelo nórdico inclui, além de uma campanha nacional, acções dirigidas a jovens e uma investigação-acção sobre os serviços que podem vir a ser mais eficazes para ajudar as pessoas a encontrar uma alternativa à prostituição. As actividades envolvem a Assembleia Feminista de Lisboa, a Associação de Mulheres Contra a Violência, a Associação Projecto Criar, a Associação Ser Mulher, a Associação de Estudos, Cooperação e Desenvolvimento, a Associação O Ninho, a Ergue-te – Equipa de Intervenção Social, da Fundação Madre Sacramento das Irmãs Adoradoras, o Centro Integrado de Apoio Familiar, a Mén Non – Associação das Mulheres de São Tomé e Príncipe em Portugal, o Movimento Democrático de Mulheres e a Rede de Jovens para a Igualdade.

“Não prejudiquem mais!”

“Se querem ajudar, temos várias pessoas a tentar sair da profissão”, enfatiza Maria Andrade, do Grupo de Partilha d’A Vida, que integra o MTS. “Conheço várias mulheres com mais de 50 anos e problemas de saúde crónicos que querem sair, têm de sair, mas não sabem como sair e pagar a renda, a água, a luz, a alimentação, os medicamentos.” Antecipa resposta do movimento neo-abolicionista, cujo discurso conhece: “‘O Estado tem de criar mecanismos de saída.’ O.K. Não existem. ‘Vamos pedir ao Estado’. E até lá? Não prejudiquem mais!”

Com a pandemia de covi-19, várias pessoas que se prostituem ficaram numa situação aflitiva. O MTS e várias organizações parceiras procuraram socorrê-las. O Grupo de Partilha d’A Vida recorreu até à plataforma Go Fund Me. Nessa busca, Maria Andrade disparou em todas as direcções. “Contactei a PPDM, o projecto EXIT. Já lhes fiz exposições por e-mail. Já escrevi na página deles: ‘Somos um grupo de partilha. Gostávamos que entrassem em contacto connosco.’ Não respondem. Há mulheres com filhos que não conseguem pagar a renda. Se existem estas instituições é agora que devem intervir. Isso é uma hipocrisia. Se querem ajudar devem trabalhar directamente connosco.”

“Ela [Maria Andrade] esteve num dos nossos webinars, mas não deu para debater”, diz, por seu lado, Ana Sofia Fernandes. “Também enviou mensagem a pedir ajuda concreta, material. Enquanto Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres, o nosso papel é influenciar políticas públicas, tentar mudá-las, não fazemos trabalho assistencial no terreno”, justifica.

Quem está no terreno a trabalhar com quem presta serviços sexuais são, sobretudo, organizações centradas em estratégias de redução de danos e minimização de riscos. Com uma lógica de saída estão duas parceiras do EXIT: a Associação O Ninho, em Lisboa, e a Ergue-te – Equipa de Intervenção Social, da Fundação Madre Sacramento das Irmãs Adoradoras, em Coimbra. E essas têm um raio de acção muito limitado.

“Eu não sou contra programas EXIT”, sublinha Maria Andrade. “Sou contra a criminalização dos clientes. Sou contra não haver segurança para quem quer exercer trabalhos sexual. Acho que quem quer fazer trabalho sexual deve ter segurança e direitos e deveres como qualquer trabalhador. Para quem não quer estar, que se criem alternativas eficazes. Não é só criticar”, acrescenta. “Isso não serve.”

Margarida Maria, que integra várias organizações internacionais de trabalhadores do sexo, leva anos a lutar contra as lógicas do movimento neo-abolicionista e a defender um modelo neo-regulamentarista ou de descriminalização de todos os aspectos do trabalho sexual, próximo do que existe na Nova Zelândia. “Nos chamamos-lhe a indústria do resgate”, diz. “Apresentam-se como um movimento de defesa dos direitos das mulheres, com a ideia de que estão a resgatar as mulheres, mas estão a puxar para ainda mais violência e perseguição policial.”

A legislação portuguesa não penaliza a prestação de serviços sexuais entre adultos e de livre vontade — penaliza, sim, terceiros que facilitem ou fomentem o negócio com o intuito de ganhar dinheiro. Para Ana Sofia Fernandes, “a evolução natural é levar até às últimas consequências a visão de que quem está na prostituição é a parte vulnerável”. Como? “Penalizando a procura e fomentando a saída do sistema, criando alternativas.” 

São duas visões antagónicas. O debate está em cima da mesa. Entrou na Assembleia da República uma petição com outra visão ainda, uma proposta de regulamentação que é uma espécie de recuo ao modelo que vigorou em Portugal até 1962: registo, exames de saúde periódicos, uso de certificado de aptidão profissional, espaços específicos para trabalhar, idade mínima de 21 anos. A audição fez-se na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com a participação da Comissão de Trabalho e Segurança Social. O relatório irá determinar se o assunto vai ou não subir ao plenário no início da próxima sessão legislativa.

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