Os frugais nacionais

Que, no meio disto, haja quem seja pago para afirmar que tem pena ou vergonha de Portugal ter de receber ajuda externa, irrita-me. Primeiro, porque nem é ajuda nem é externa. É o financiamento das e políticas internas da União.

Confesso que me desanima que, 34 anos depois da nossa adesão, ainda haja comentadores na comunicação social com tão pouco conhecimento sobre a União Europeia. E exaspera-me que continue a haver quem diga que Portugal está na UE como um pedinte.

Tendo participado no processo de preparação do pedido de adesão, quando os leio, sinto-me regressado a esses tempos. Aí sim. Éramos nós e eles.

Parece não estar ainda bem assimilado que Portugal não é um país terceiro em relação à UE. A Europa somos nós. E quando, no quadro das políticas europeias, regiões portuguesas recebem dinheiro para execução das políticas comunitárias, a União não está a “dar” a Portugal. Está a financiar políticas europeias.

A União tem um Orçamento, cujas receitas provêm das contribuições de cada Estado-membro que, como Portugal, concorrem com a quota estabelecida no Tratado e cujas despesas asseguram o funcionamento da União e a execução das políticas comunitárias, como a PAC, a política de coesão, a vigilância das fronteiras comuns, a investigação científica etc., etc..

A execução e financiamento dessas políticas são feitos através de critérios objectivos aplicados a todos os países, com base em decisões em que todos participam. Se fizessem uma avaliação da posição dos diversos países, esses comentadores ficariam a saber quanto é que Portugal paga, e talvez se surpreendessem ao constatar que não somos necessariamente dos principais beneficiários em todas as áreas.

Verificariam que mesmo na política de coesão, área onde Portugal é um importante beneficiário, há regiões portuguesas que já dela não usufruem e regiões alemãs ou de outros países mais ricos que continuam financiadas pelos fundos de coesão.

A política de coesão não foi um assomo súbito de generosidade dos Estados mais ricos. É a contrapartida do Mercado Único, sem a qual este não poderia existir. 

O Mercado Único beneficia todos os Estados. Mas beneficia sobretudo os que eram maiores exportadores e agora têm um mercado livre de 500 milhões de consumidores. Para haver um Mercado Único, é imprescindível que, como em todos os países, haja um orçamento para reequilibrar as diversas regiões que o integram, de modo a aumentar o poder de compra nas regiões mais desfavorecidas e reduzir a dependência externa, propósito cuja pertinência a presente pandemia veio evidenciar. Dizer neste quadro que Portugal anda de mão estendida na Europa tem o mesmo sentido que dizer que em Portugal, onde Lisboa é a única região que distribui riqueza para as outras, o Norte, ou o Alentejo, andam de mão estendida.

Também não existe razão para os “frugais nacionais” se comoverem tanto com a situação dos países contribuintes líquidos, a quem eu atribuiria um adjectivo mais preciso do que “frugais”.

Tomemos o caso da Holanda. A Holanda é um dos maiores beneficiários do Mercado Único. Não só pelo que vende, como pelos réditos prodigiosos de que usufrui devido ao Porto de Roterdão, o maior da Europa, de onde, justamente devido ao Mercado Único, as mercadorias fluem para todos os outros Estados da União sem pagar taxas aduaneiras.

Por outro lado, a Holanda é também um dos grandes usufrutuários do Euro. Porque vende os seus produtos com uma moeda mais fraca do que se tivesse ainda o florim, como porque depois paga juros mais baixos como se tivesse uma moeda forte. Essa é a pecha do euro incompleto, de cuja correcção depende em muito o futuro da Europa.

Finalmente, numa típica perversão calvinista, a Holanda constitui dentro da União um paraíso fiscal, de que recebe milhares de milhões de euros por ano, de empresas que ali estabeleceram a sede e ali pagam impostos para financiar os generosos serviços públicos holandeses, com os lucros que auferem dos consumidores de outros países, como Portugal.

Que, no meio disto, haja quem seja pago para afirmar que tem pena ou vergonha de Portugal ter de receber ajuda externa, irrita-me. Primeiro, porque nem é ajuda nem é externa. É o financiamento das e políticas internas da União.

Do que deviam ter vergonha é que existam empresas portuguesas que paguem na Holanda impostos com o dinheiro dos consumidores portugueses. E que a Assembleia da República ainda louve quem o faz.

Se contabilizarem as repercussões reais de todos estes elementos na economia holandesa e dos outros “frugais”, talvez mudem de ideias sobre quem financia quem. E parem de tomar provincianamente os calores dos “frugais”, como de isso os tornasse um deles. Ao tomar os calores dos ricos, devem sentir algum do cosmopolitismo que neles provincianamente invejam e de que, ao contrário do que julgam, Portugal hoje usufrui sobejamente.

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