A culpa é da Lei do PAN e andamos todos a comer gelados com a testa

O título deste texto poderia também ser: se tivéssemos abatido os animais antes não teriam morrido nos abrigos em Santo Tirso. É nesta argumentação lógica perfeita que alguns fazedores de opinião querem que os seus leitores acreditem.

O título deste texto poderia também ser: se tivéssemos abatido os animais antes não teriam morrido nos abrigos em Santo Tirso. É nesta argumentação lógica perfeita que alguns fazedores de opinião querem que os seus leitores acreditem.

Para além das questões éticas associadas ao abate de animais de companhia como forma de controlo populacional, que a sociedade portuguesa considera inaceitável e por isso exigiu o seu fim, este sempre se revelou técnica e financeiramente ineficaz. Se o abate resolvesse o problema dos animais abandonados e da sobrepopulação, estes já não existiriam. Durante décadas os municípios nunca deixaram de abater, aliás, dizimaram animais com uma eficácia assustadora, mas não conseguiram reduzir o abandono nem baixaram o número de abates. Há mais de três décadas que a OMS considera o abate uma estratégia errada. Os estudos já foram apresentados, o assunto já foi amplamente debatido e é por isso inacreditável que agora alguém venha retomar esta discussão ao invés de lutar por soluções e reivindicar mais investimento.

Se a estratégia está errada, mude-se. A solução alternativa é sobejamente conhecida, chama-se esterilização. Passa por esterilizar os animais em errância e das colónias, os entregues para adopção e por apoiar as pessoas que não têm capacidade financeira para o fazer. Pena é o mundo do comentarismo não referir que dos 500 mil euros de apoio financeiro disponibilizado às autarquias para promoção de campanhas de esterilização que o PAN fez aprovar no Orçamento do Estado de 2018, apenas 65 mil euros (13%) tenham sido atribuídos por falta de candidaturas. Pena é quem representa os médicos veterinários municipais não falar neste pormenor.

Há quem defenda que a solução passaria pelo prévio abate massivo de animais. A experiência e a ética dizem-nos que não. A maioria das câmaras municipais, se pudesse continuar a abater animais, iria continuar a não assumir as suas responsabilidades e a adiar a implementação de políticas públicas de protecção e bem-estar animal. A insensibilidade e a falta de compromisso da maioria dos autarcas nesta matéria são inquestionáveis.

Basta analisarmos o reiterado incumprimento da obrigatoriedade de disporem de Centros de Recolha de Animais. Desde 1925 é obrigatória a existência de canis em todos os municípios (Decreto n.º 11242, artigo 3.º). O art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 317 de 1985 estabelece a obrigatoriedade de existência de canis e gatis municipais. Desde 2001 que o Decreto-Lei n.º 276, no seu art.º 19.º, obriga à recolha de animais reiterando a obrigação da existência de centros de recolha oficial. Em 2003, o Decreto-Lei n.º 314 vem no seu art.º 8.º reforçar estas obrigações. No entanto, menos de metade dos municípios cumpre esta obrigação. Será que um período de 100 anos não é considerado tempo suficiente para se cumprir a lei? Pena é os opinadores que carregam no gatilho para culpar uma lei em vigor há cerca de ano e meio não fazerem a análise rigorosa de um século de incumprimento autárquico. Pena é os opinadores não aprofundarem um pouquinho e constatarem que os abrigos ilegais, como o de Santo Tirso, não são um fenómeno pós Lei do PAN, sempre existiram e proliferaram com a conivência da DGAV e das câmaras municipais. Pena é quem representa os médicos veterinários municipais preferir apontar o dedo à Lei do PAN em vez de exigir mais investimento, mais responsabilidade e mais compromisso ao Estado e aos presidentes de câmara. O PAN recusa-se a olhar para os médicos veterinários como meros algozes dos animais, não é essa a sua formação e muito menos deve ser essa a sua missão.

E não, não concordo que antes de mudar leis seja preciso mudar mentalidades. Mal seria se assim fosse, tantos são os exemplos que demonstram que não raras vezes o legislador tem de ser o motor da mudança que a sociedade exige. Mal estaria o país se o Parlamento, antes de legislar sobre crimes relacionados com violência doméstica, ódio racial, difamação, conduta rodoviária ou protecção ambiental, tivesse que esperar décadas ou séculos para que a alteração das mentalidades não afectasse os bens jurídicos indispensáveis à conservação e ao progresso da sociedade. Coisa diferente é o facto de esta realidade vir comprovar como o Estado e os responsáveis políticos se têm demitido de encontrar soluções que consideram o bem jurídico vida quando o assunto é animais. Não basta fazer leis, é necessário assegurar meios em quantidade suficiente e mesmo estes são insuficientes se os responsáveis pela sua implementação não assumirem um compromisso com as mudanças que são necessárias para resolver os problemas e continuarem a esconder-se em argumentos que espelham opções de desresponsabilização e de laxismo. Não, não andamos todos a comer gelados com a testa.

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