“Tudo começou com um puto rebelde que precisava de largar energia”

Passou pela A Espia, na RTP, e estará na Crónica dos Bons Malandros. O actor Luís Filipe Eusébio é um dos seleccionados para o Mini-Passaporte, um programa que apoia a internacionalização de actores portugueses.

Foto

Luís Filipe Eusébio nasceu em Lisboa, em 1986. A representação sempre esteve com ele, mas só começou a olhá-la como algo que poderia fazer profissionalmente por volta dos 18 anos. Ainda que a vida nunca lhe tenha dado um sorriso fácil, desistir não foi uma opção. Há três anos mudou-se para Londres e concretizou um sonho com quase uma década. Antes disso, em Portugal, estudou e trabalhou com John Frey, professor numa das escolas mais conceituadas do mundo, a William Esper Studio, em Nova Iorque, que foi uma espécie de pilar na fase em que os caminhos de ambos se cruzaram.

No espaço de um ano e meio vai na segunda participação em produções ficcionais da televisão portuguesa, na RTP, depois de A EspiaO Atentado, começou a rodagem de A Crónica dos Bons Malandros. Na primeira, interpretou o papel de Paulo Santos, o que lhe deu mais visibilidade e abriu porta para outras oportunidades como o Mini-Passaporte, um programa pertencente ao Passaporte, que tem como objectivo promover a internacionalização de actores portugueses, através de workshops e reuniões com directores de casting internacionais.

Ainda que esteja a passar mais pela televisão, o seu foco continuar a ser o cinema e o Óscar não está fora de hipótese, acredita. Está na sombra, mas isso não lhe causa incómodo. O trabalho e a aprendizagem constantes são o que lhe interessa. 

Foto

O local escolhido para esta entrevista foi o Chapitô. Porquê?
O Chapitô foi um sítio muito importante em determinada fase da minha vida. Mais ou menos há dez anos, foi o sítio que, além de me dar trabalho, me permitiu conhecer pessoas que me abriram muito a cabeça e a maneira de ver o mundo. Era muito novo, estava a descobrir o mundo, e venho para um sítio como o Chapitô, onde as pessoas são muito livres e têm todas uma concepção do mundo muito diferente dos padrões considerados normais. Foi um momento muito belo. Aliás, aconteceu num momento triste da minha vida, mas ao mesmo tempo foi um momento de regeneração e de conhecer muitas coisas novas e muitas maneiras de pensar diferentes.

Esse momento triste de que fala foi a mudança para Londres não se ter concretizado. Ao invés, seguiu-se Évora e o curso de Relações Internacionais?
A carreira [de actor] não estava a descolar. Tive de tomar uma decisão que foi baseada naquelas pressões que sentimos das pessoas à nossa volta: ‘Tens que ter uma vida estável, ser artista não é profissão…” Estas coisas que ouvimos. Como não tinha uma estrutura familiar que me suportasse, naquela altura achei que era o mais acertado. Na realidade queria estudar Economia, mas não tinha média para entrar, e na altura Relações Internacionais em Évora fazia parte do departamento de Economia e tinha muitas cadeiras [dessa área]. As outras, um pouco mais complicadas como a matemática, em que eu sou um nabo, eram substituídas por cadeiras de História, que me interessavam. Nessa fase, se calhar, era o que estava a precisar: dar um passo atrás, reorganizar-me, reestruturar-me e aproveitar o bom que seria estar numa cidade um pouco mais pequena e conhecer pessoas diferentes para depois eventualmente poder tomar outras decisões e alavancar.

Como correram esses três anos?
Os primeiros seis meses foram horríveis. Houve uma mudança de local, de vida, de tudo. Depois passei um grande aperto económico. Continuava a vir trabalhar para o Chapitô, o que começou a tornar-se um bocado insustentável, porque trabalhava seis dias por semana cá e a fazer estas viagens constantes… Perdi o meu trabalho, a bolsa de estudo nunca mais chegava, então fiquei ali numa situação muito periclitante. Além disso, entrei na universidade um pouco mais velho que os meus colegas, portanto também já tinha uma maneira de estar e uma visão um pouco diferentes e isso levou a que existissem alguns atritos. Acho que não me senti muito bem recebido. A determinada altura, com o atraso da bolsa de estudo, já nem tinha dinheiro para comer. Tive que engolir qualquer tipo de egos ou orgulhos e pedi ajuda. Mas tomei a decisão de não desistir. Agora olho para trás e sinto que foi muito corajosa. Estava fora do circuito de castings ou de as pessoas sequer se lembrarem de mim para projectos, mas continuava a receber de vez em quando um convite. Nos seis meses seguintes ao meu primeiro ano em Évora, peguei nas minhas coisas e andava de mala às costas. Ia filmar pequenos projectos. E foi isso que me alimentou.

Refere não ter tido uma base familiar de suporte. Como assim?
Os meus pais divorciaram-se quando era muito novo. Fui educado na casa do meu avô, em Cascais. Ele era o meu suporte, era a única pessoa que eu sinto que me apoiava, que acreditava em mim, porque eu era meio rebelde em miúdo. Como o meu avô faleceu subitamente e eu não tinha grandes ligações com mais ninguém da minha família, decidi sair de casa. Tinha 20 anos. Já trabalhava, mas era um passo meio louco. A partir daí, todos os passos que dava tinham de ser muito bem ponderados, porque estava sozinho. Tinha sempre de encontrar uma forma de fazer dinheiro que me permitisse sobreviver, pagar as minhas coisas, investir em cursos, estar sempre a estudar. Isto para mim sempre foi uma coisa contínua: ainda hoje estou sempre a estudar. Implicou que tivesse uma logística diferente, o que às vezes me deixava revoltado. Senti sempre que ficava aquém das minhas possibilidades, não por algo que fosse da minha culpa, mas porque as minhas circunstâncias não me permitiam estar mais focado ou dar mais de mim ou às vezes só sentir-me seguro para arriscar. Mas não gosto de fazer disso bandeira — apesar de ter vivido circunstâncias muito peculiares, continuo a achar que sou muito privilegiado e sempre procurei soluções e não me vitimizar.

O teatro chegou por iniciativa do avô?
Não. Embora andasse numa escola pública, depois ia para um colégio de freiras fazer os tempos livres. Foi aí, por volta dos 8 anos, que acharam que, por ter muita energia e ser muito rebelde, precisavam de me encaminhar para o grupo de teatro. Depois, já na escola secundária, juntei-me a um grupo de amigos e com a nossa professora de Português criámos um grupo de teatro. Foi graças a esse grupo que um dia vou a um churrasco em casa de um amigo, do qual acabo por ir ao casting de uma série. Foi assim que comecei a pensar nisto mais seriamente. A partir daí estive sempre ligado ao teatro com a Confluência [uma associação cultural], estive no Teatro da Comuna, procurei estudar. Mas tudo começou com um puto rebelde que precisava de largar energia.

Foto

Foi então, na altura do secundário, que a ideia de ser actor começou a tomar forma?
Foi no fim de secundário já, quando tinha 18 anos e fui ao casting de Diário de Sofia, que foi uma série em que depois entrei. O tal que surgiu no churrasco. Na altura gostava muito de teatro, mas não via como uma profissão. Ainda hoje não vejo, vejo mais como um ofício. Queria ser jogador de futebol, e era bom. Em retrospectiva, acho que era um miúdo com tão pouco apoio e tão pouca confiança que de repente no futebol, como tinha jeito e havia pessoas que me apoiavam e que me enchiam de alguma forma o ego, a confiança ou o que fosse, comecei a olhar [para isso] como a minha forma de expressão. Era um sítio onde me sentia válido. Já tinha decidido que queria terminar o secundário à noite e pensei ‘bom, se calhar posso fazer isto com o futebol, ganho um dinheiro e depois quando quiser largo’, mas como surgiu o casting e fiquei com a série pensei: ‘Se calhar, vou fazer isto, vou ganhar o meu dinheiro aqui, um dia de cada vez.’

A paixão da representação foi sendo descoberta?
Eu soube que podia ser actor e todas as pessoas que me conhecem bem dizem isso. Sempre tive uma imaginação e uma vontade muito grandes de não ser eu e de ser outras coisas. Se era uma coisa deliberada ou não, não sei, mas era isso que existia em mim. A verdade é que o teatro e a representação estiveram sempre lá para mim e a determinada altura, no fundo, era o meu porto seguro. Sentia-me mais confortável, mais eu, com mais voz ali, num sítio onde é suposto estar-se exposto e onde normalmente as pessoas se recolhem. Para mim era só natural, orgânico, era o sítio onde eu pertencia. Quando as coisas se começaram a profissionalizar, procurei aprender e absorver o máximo para ser útil ao trabalho e ao que estou a fazer. Tenho muito respeito pelo que faço e pelos artistas e para mim é uma coisa quase espiritual, quase religiosa a entrega que se tem de ter para este trabalho, os sacrifícios que se fazem. Tudo isso fui construindo, fui aprendendo. Não foi tanto almejar um sonho, mas aceitar o que sou.

Embora em termos financeiros não fosse fácil pagar os cursos e os workshops, foi algo que sempre valorizou?
Acredito que se deve trabalhar constantemente e procurar sempre aprender e ser uma esponja para melhor poder servir. Aprende-se muito a trabalhar, mas se não tiveres oportunidade de estar a trabalhar tens de te alimentar de alguma forma. Era um pouco ‘consegui juntar aqui um dinheiro, está ali um curso que me interessa, lá vou eu’. Fui subindo assim esses degraus, nunca procurando nenhum objectivo mais do que simplesmente aprender.

Estudou e trabalhou com o John Frey. Ele foi um pilar?
O que ele ensinava e a forma como ensinava era muito boa. Lembro-me de ir ver as peças de final de curso e não acreditava no que estava a ver. Havia pessoas que claramente se destacavam, mas todas elas tinham uma presença e uma maneira de representar muito diferente do que existia em geral em Portugal. Aquilo fascinava-me porque já tinha o sonho de ir para fora. Devo muito ao John. No primeiro ano depois de ter voltado de Évora [em 2013], estava depenado à procura de trabalho e tinha de pagar o curso [na John Frey Studio for Actors]. Tinha uma moeda de ouro que o meu avô me tinha deixado; vendi-a para pagar o curso. A única recordação que tenho agora dele é uma aliança. Mesmo assim, depois não consegui trabalho e foi o John que me proibiu de desistir. No ano a seguir convidou-me para trabalhar como seu assistente. Foi uma experiência extraordinária. Se isso não tem acontecido, provavelmente tinha sido engolido pela vida e não estava aqui agora. Ele foi muito importante para mim. Fiquei muito feliz quando ele foi para Nova Iorque. Acho que ele não é tão valorizado quanto merecia e de repente está a dar aulas numa das melhores escolas do mundo [William Esper Studio] e é nomeado para um prémio Sophia por um guião que escreveu [Cabaret Maxime]. Bastou apenas sair de uma zona mais tóxica onde se encontrava, porque o valor esteve sempre lá.

Talvez um pouco à semelhança do seu percurso?
Não me vitimizo muito. Sei que não tive muitas oportunidades, as que tive, felizmente, as pessoas gostaram de mim, recomendaram-me e chamaram-me para outros projectos. Os professores que tive, em geral, sempre apostaram em mim e isso alimentou-me e deixa-me muito feliz. A procura do reconhecimento ou fama, tentar vingar o passado ou tentar afirmar-me é uma coisa que só prejudica e quando larguei isso foi quando as coisas começaram a fluir. Depois acontece tudo no tempo certo. Não sei se foi isso que aconteceu comigo, mas sei que ir para Londres ajudou-me muito, especialmente porque cresci e aprendi muito e de repente sinto que trago algo diferente.

Foto

Em 2017, chegou então Londres. Porquê esta escolha?
Não sei explicar. Sempre tive um fascínio. Londres é uma cidade muito peculiar. Não é um reflexo de nada mais que exista no mundo, é uma coisa única. No que toca às artes é um ponto de encontro de todo o tipo de artistas de todo o lado do mundo. Como artista tens de te alimentar constantemente e ali há uma fartura. Acordas entusiasmado só por estar naquela cidade. O que te entusiasma é a energia mais poderosa que se pode ter. Quando se está entusiasmado tudo é possível.

Foi uma mudança planeada?
Não. Nesse ano [de 2017], não aconteceu nada. Senti mesmo que fui deixado para trás. Londres surge porque já tinha feito alguns trabalhos para a CNN e eles gostaram muito de mim. Surgiu uma oportunidade de estágio e fizeram-me uma proposta para participar nos testes de admissão. Na altura não tinha nada, já nem tinha dinheiro. Fiz os testes e fui dos melhores, tenho orgulho em dizer isto. (Risos) Eles ofereceram-me o lugar, eu aceitei e no dia seguinte liguei-lhes a dizer ‘lamento imenso, mas não posso aceitar’. Agora, olho para trás e foi novamente um dos actos de coragem mais loucos de que me lembro. Aquilo não me garantia nada, eram três meses de estágio a receber o ordenado mínimo, mas era uma experiência extraordinária e eu rejeitei porque pensei ‘não, eu já fiz isto com Évora, não vou fazer isto outra vez’. No limite da exaustão, da pobreza e do desespero agarrei-me àquilo que queria. Só levava 200 euros na carteira, uma mochila e duas malas. Não sabia onde é que ia viver, onde é que ia trabalhar, se ia passar nas audições da escola, não sabia nada! Ao contar isto parece mais dramático do que é, porque tenho amigos em Londres e sei que eles não me iam deixar ficar na rua. Arranquei. O resto é história. Olho para trás e penso ‘que louco’, mas faria tudo outra vez.

Em 2020 estreia A Espia, onde contracena ao lado de nomes conhecidos do público português e que fazem carreira no estrangeiro. É o ponto de partida para algo mais em termos de carreira?
Só pela dimensão já seria muito benéfico para mim, porque iria ser até à altura o maior projecto onde já tinha estado envolvido. Tenho um sentimento de que estou sempre a recomeçar. Quando comecei A Espia pensei ‘passados dez anos este é o meu primeiro grande passo’. Assim que [a série] acabou o meu sentimento foi ‘o próximo é que será o grande passo’. Tenho em mim uma ideia muito concreta de que vou ser tão bom ou tão valorizado quanto o trabalho que acabei de fazer. É muito fácil derrapar. Pensares de alguma forma que está garantido ou que só porque vais trabalhar com nomes que são mais conhecidos é sinónimo de que vai ser bom. A Espia foi [um projecto] extraordinário — não só pela dimensão, mas pelo que se viveu. E pelo difícil que foi e por nos termos mantido todos unidos. Isso para mim é que conta. Desde A Espia que tenho tido alguns approaches, o que me deixa feliz. Estive a filmar O Atentado, depois houve o confinamento e as coisas pararam. Não me ajudou muito, nem a mim nem a ninguém, mas a verdade é que desde então as coisas arrancaram um bocadinho em Portugal e não fui esquecido. Vou fazer agora uma personagem secundária [em A Crónica dos Bons Malandros], mas é bastante relevante e muito complicada de fazer. Sinto que de alguma forma têm confiança em mim. Mas, no fim, o meu próximo trabalho será o meu começo.

É uma ambição ser uma estrela da representação, ver o nome reconhecido?
Acho a fama muito perigosa. Pode distrair. É um bocado como os elogios. Se ligares muito a isso ficas distraído do trabalho em si. Gosto de coleccionar as experiências e as pessoas com quem acabo por partilhar e crescer. A fama é uma consequência. Fazer disso um objectivo seria errado. O meu objectivo é sempre aprender e conseguir ser útil ao trabalho que estou a fazer e crescer. A fama há-de acontecer ou não. Eu vejo-me perfeitamente antes dos 45 anos a ganhar um Óscar. Acho que é possível.

O que falta fazer?
Tenho tanta coisa por fazer. Profissionalmente, conseguir ter um fluxo de trabalho mais estável, mais desafiante, que me permita crescer mais. Não no sentido de ser muito famoso, mas crescer como profissional e como pessoa. Comprar casa, fixar-me, deixar de andar de casa às costas, embora adore! Gostava de ser pai um dia — vou pôr essa na lista. Viajar mais. Há tantos sítios onde gostava de ir para estudar... Tantas pessoas com quem gostava de trabalhar. Ganhar o Óscar. Há tanta coisa ainda por fazer.

Texto editado por Bárbara Wong

Sugerir correcção