“Animalocentrismo” radical

Cada um faz livremente as suas escolhas e é verdade que há animais bem mais leais que pessoas, mas desistir do género humano, mesmo para um pessimista antropológico moderado como eu, é desistir de cada um de nós, daquela massa invisível que deve unir as comunidades, sob pena de não nos distinguirmos de outros seres vivos ou das simples coisas.

Um ser humano é um ser humano e um animal é um animal. Nos ditos tempos “pós-modernos”, é, por vezes, essencial roçar o truísmo. Quero com isto dizer que, concordando em absoluto com a criminalização dos maus tratos e abandono de animais de companhia, não é sem tristeza que vejo uma mobilização cidadã que vivamente saúdo onde ela não existe – nas atrocidades cometidas contra outros seres humanos. Os refugiados que ninguém quer receber, os menores vítimas directas ou indirectas de violência doméstica, os idosos despejados e abandonados em lares, os cidadãos portadores de deficiência a quem não são dadas oportunidades de efectiva inserção na vida activa.

Sejamos claros: em muitas casas um animal de companhia substitui uma criança. Nada há de mal nesta escolha, pois cada um é livre sobre a paternidade ou maternidade e pode sentir-se mais realizado tendo um cão ou gato que um filho ou filha. Até há pessoas que nunca deveriam exercer responsabilidades parentais, como as decisões judiciais estabelecem diariamente. Agora, que me dá um nó na garganta que o sobressalto cívico dos seres humanos pareça ser mais rápido nos graves eventos do passado fim-de-semana em que vários animais morreram carbonizados ou em que se invade um “canil” dito clandestino para salvar os “seres vivos dotados de sensibilidade”, quando a adopção ainda é demorada e quando os nossos maiores são esquecidos como roupa velha, isso não posso calar.

É evidente que os gestos de amor não se dividem, antes se multiplicam, ou seja, não é por haver uma preocupação com o bem-estar animal que se desviam as atenções das pessoas, em especial das mais carenciadas de afectos e de bens materiais. Mas corremos o risco, nesta sociedade de faz-de-conta, de sermos conduzidos por extremismos animalistas como os do PAN, que esquecem o início deste artigo: por muito importante que um animal seja (e se não trate já, juridicamente, de uma coisa), uma pessoa será sempre mais importante na escala axiológica natural e do Direito.

Do mesmo passo que as touradas deviam ser banidas, por não serem qualquer tipo de espectáculo cultural, mas uma forma bárbara e cruel de encontrar algum deleite(?) no sofrimento de outro ser vivo, nem tão-pouco colher o argumento económico, pois a tortura também empregava algozes que ficaram no desemprego ou tiveram de mudar de vida, é também verdade que o politicamente correcto chega ao ponto quase cómico de endeusar a vida animal acima da vida humana. E é contra esta inversão axiológica inadmissível que me revolto.

Tanto mais quanto a legislação penal em relação aos animais de companhia foi feita com os pés e nem sequer soube definir correctamente o que entende por tais seres, o que, na prática, em especial às polícias e aos tribunais, coloca enormes dificuldades aplicativas. Mais, a redacção dos preceitos é de tal forma que, ao menos em certas interpretações, alvejar um animal e provocar-lhe a morte imediata pode não ser crime. Não digo que uma hermenêutica teleologicamente fundada não permita superar as lacunas mais escabrosas, mas sublinho – isso sim – que tanta preocupação animal acabou por parir uma “semi-montanha”. Até a localização destes delitos é grotesca: como se não sabia onde os arrumar, foram para o fim do Código Penal, como uma espécie de gaveta de “outros” ou “diversos”. Arrastam-se os projectos de lei na AR sobre o tema, o que demonstra bem como a “luta animal” é, amiúde, mais uma flor na lapela que uma coerente preocupação.

Cada um faz livremente as suas escolhas e é verdade que há animais bem mais leais que pessoas, mas desistir do género humano, mesmo para um pessimista antropológico moderado como eu, é desistir de cada um de nós, daquela massa invisível que deve unir as comunidades, sob pena de não nos distinguirmos de outros seres vivos ou das simples coisas.

As prioridades não têm de se excluir: pode e deve defender-se e aplicar-se efectivamente o bem-estar animal sem que isso ponha em risco a defesa dos seres humanos. Todavia, se os recursos escassearem, que não haja dúvidas quanto às prioridades: primeiro os seres humanos, em especial os menores e os idosos (mesmo que seja mais divertido brincar com um gato que mudar a fralda malcheirosa de um velho), e só depois os animais.

Trata-se de uma visão “servivocêntrica”, que não somente “antropocêntrica”, mas que, em caso de absoluto e inultrapassável conflito insolúvel, não me restam dúvidas em assumir-me como tendo o ser humano no centro das preocupações societárias em detrimento de um “animalocentrismo” em que muita gente se enleia, talvez em busca de uma sociedade em que, por muito desagradáveis que sejam mulheres e homens, a pleonástica eminente “dignidade da pessoa humana” ceda passo a outros valores.

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