Queremos animais protegidos ou prisões para animais?

É necessário conceber-se uma estratégia nacional que envolva todos os actores da chamada causa animal, que passe por uma campanha massiva em prol da adopção de animais institucionalizados em detrimento da compra de animais de companhia.

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Nelson Garrido

Todas as pessoas de bem querem o melhor para os animais. Inclusivamente, para os animais que não são de ninguém e que, por isso, são responsabilidade de todos nós. A primeira pergunta que pessoas de bem devem fazer é: “Estamos, enquanto sociedade, a proporcionar-lhes o melhor destino possível, com os recursos que temos?” Talvez não.

E tudo começa por nós. Sempre nos habituámos a ver cães acorrentados nas traseiras das moradias. “Tudo bem. Não estão abandonados.” Pensamos nós, enquanto, apesar de incomodados com aquela coleira apertada e os pinotes de quem clama por atenção, seguimos o nosso caminho. Mas não, não está tudo bem. 

Em 2020, um animal não pode ainda substituir aquilo que a tecnologia já providencia: um alarme. Isso contraria claramente o princípio da não-coisificação do animal, que vigora no nosso ordenamento jurídico desde 2017. É disto que falamos: de termos um animal, permanentemente (ou por longos períodos de tempo) acorrentado para pouparmos um trocos na compra de um alarme, que é, sem sombra de dúvidas, mais eficaz e sai mais barato a longo prazo. Consigo imaginar o que se poupará com a aquisição de um alarme em serviços médico-veterinários (ou na assistência técnica, se preferirem).

Sempre me questionei acerca da suposta eficácia de um animal acorrentado enquanto cão de guarda. Se o espaço for invadido, de que valerá a quem vive naquela casa um animal acorrentado? Que utilidade terá? Se o animal for, na sequência de uma invasão do espaço, maltratado, como se defenderá? E se morrer? Com quem fica a responsabilidade? Deita-se no caixote do lixo, como se faz a qualquer dispositivo electrónico? Quanto vale, afinal, a vida de um cão?

Não vale a pena continuarmos a argumentar com a tradição, com a necessidade da renovação das gerações em temas tão evidentes. Um cão não é um alarme. Um cão é um cão. Tem cérebro, estômago, intestino, bexiga, fígado, boca, membros, ouvidos, olhos, como nós. É, em quase tudo, como nós. 

Nenhum animal deve ser condenado a prisão perpétua e trabalhos forçados por um crime que não cometeu.

Não é muito diferente do que se passa nos canis e gatis de norte a sul. Sejamos honestos, de norte a sul... à escala global. Nisso, Portugal está alinhado com a maioria do globo (ainda que, se nos compararmos com a maioria dos países da Europa e alguns estados dos EUA, fiquemos bem aquém do desejável).

Os animais que não vivem em prisão domiciliária para nosso capricho e companhia (mas com regalias de mimos e guloseimas e devido acompanhamento médico-veterinário), ou vivem ou na rua, onde são livres mas estão rodeados de todos os perigos, ou em vivem em autênticas prisões (com muito raras excepções). Vivem acompanhados de colegas de cela de quem podem não gostar muito, de onde não saem todos os dias, nem todas as semanas ou até por meses a fio. Chamar abrigo a um local onde apanham chuva e passam tanto frio ou tanto calor como na rua é pura cortesia.

Não nos iludamos: ter um animal de companhia é um capricho. É uma utilização, como qualquer outra, de um animal que compensa a nossa necessidade de dar e receber afecto e alimenta o nosso espírito salvador. Contra mim falo, que dou guarida a quatro. E eles, na sua eterna inocência e gratidão, lá nos retribuem com juros incalculáveis. Não merecerão por isso, muito mais de nós? Vamos olhar friamente para as coisas como elas são.

Perspectiva do humano: vemos um animal abandonado ou errante na rua. Segue-se o habitual apelo no Facebook, após ligar ao Centro de Recolha Oficial e ninguém atender e a todas as associações que nos dizem que estão lotadas. Não descansamos enquanto não o tiramos dali e alguém o recolher. Finalmente, um bom samaritano. O nosso coração acalma porque já não estaremos expostos àquela miséria. A nossa vida continua com a sensação de missão cumprida.

Perspectiva do animal: quem são estes? Vão fazer-me mal? Para onde me levam, já não bastava não saber como vim aqui parar, agora isto? Que espaço tão pequeno. Porque é que não posso sair? Porque é que tenho de comer ao pé do sítio onde faço chichi? Por que razão não me posso esconder? Porque estão todos a ladrar? Aquilo é um gato? Aquilo é um cão? Porque é que ninguém fala comigo? Porque é que nunca mais senti a luz do sol a aquecer-me o pêlo? E uma festa? O que é que eles querem dizer com quarentena? Só queria poder estar só um bocadinho.

Se há alternativa viável para os animais sem lar em 2020? Talvez não. Talvez ainda não estejamos preparados para revolucionar a forma como encaramos os outros animais mas temos de, lentamente, começar a mudar o paradigma. A lei está a evoluir, impulsionada pela filosofia moral e pelos recentes Animal Studies. A lei portuguesa já diz que os animais não são coisas. E a lei pode ajudar a mudar o resto.

Atente-se ao que é determinado para as condições de alojamento dos animais ditos de companhia pelo Decreto-Lei n.º 276/2001 de 17 de Outubro, que aplica a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, aprovada pelo Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril, (há 27 anos portanto; vinte e sete anos!) O referido Decreto-lei, apesar das sucessivas alterações que sofreu, ainda está, na sua base, em vigor. Há 19 (dezanove) anos. Será que nada mudou em 19 anos? 

Será que agora que temos um novo estatuto para TODOS os animais não estamos mais obrigados a repensar as condições em que mantemos estes seres que não são coisas, que são agora, e cito, “seres dotados de sensibilidade e objecto de protecção jurídica em função da sua natureza”, conforme se lê no art.º 201.º-B do nosso Código Civil?

Ainda se justifica autorizarmos touradas em Portugal? Ainda é uma questão de gosto, pelo menos desde 2017? Ainda se justifica a competição desportiva com animais? Ainda se justifica a caça e pesca desportivas? O tiro aos pombos? Os animais ainda podem ser troféus?

Ainda se justifica mantermos animais acorrentados porque nos recusamos a gastar dinheiro num alarme? Para que serve a tecnologia se não vier aliviar os nossos fardos... e os deles? Ainda se justifica mantermos carroças com tracção animal?

Ainda se justifica construir canis e gatis, ainda que bem intencionados, onde os animais são institucionalizados e condenados a pena perpétua sem terem cometido crime algum? O dinheiro não abunda, nem o do Estado nem o das famílias. Mas é possível fazer-se uma melhor gestão do dinheiro que há.

Começam a existir, no caso dos canis, novos projectos, pensados para aumentar o bem-estar dos animais. Embora eu não tenha a certeza de que possamos falar em aumento do bem-estar. Talvez, com mais verdade, devamos optar pela expressão diminuição do sofrimento. 

A alternativa à pena de morte dos animais de companhia que ninguém quer não pode ser a prisão perpétua. Como evitar isso?

Primeiro pensamento a ter em linha de conta: os canis e gatis públicos e privados não podem ser abrigos definitivos. É necessário conceber-se uma estratégia nacional que envolva todos os actores da chamada causa animal, que passe por uma campanha massiva em prol da adopção de animais institucionalizados em detrimento da compra de animais de companhia. É necessário encontrar a coragem para negociar com os criadores uma estratégia transitória que alivie o cenário dantesco que temos em Portugal no que respeita a animais errantes e institucionalizados. Se estamos a incentivar a adopção, não podemos, honestamente, incentivar a concorrência à adopção. É preciso que os criadores, na sua estratégia de responsabilidade social, sejam ouvidos e participem na resolução do problema, que é de todos. 

Segundo pensamento: é necessário investir no combate ao abandono, reduzir o IVA nos cuidados médico-veterinários, oferecer esterilizações (e tornar a esterilização até obrigatória num período transitório), criar um serviço médico-veterinário com preços acessíveis a famílias com baixos rendimentos, reduzir ou eliminar o valor a pagar com o registo de animais e implementar medidas eficazes de sensibilização.

Terceiro pensamento: não podemos ter dez cães em dois metros quadrados. Ok, isto é um exagero, mas em muitas situações não andará longe da verdade. Esta deve ser uma das realidades onde dizer “onde comem 10, comem 11” não dá. Não comem. Não ficam bem. Não vivem bem. A nossa boa vontade não pode esquecer-se dos sentimentos e necessidades dos animais. Acorrentar animais em gatis e canis porque não há espaço nas boxes não é uma solução e é mais do que sinal de que há muito o local em causa ultrapassou o seu próprio limite. Se chegamos aí, há que ter a coragem para a assumir que não há espaço para mais animais e procurar outra solução para o animal.

Quarto pensamento: é preciso ter condições, funcionários, voluntários e infra-estruturas que enriqueçam a vida daqueles animais. É preciso propiciar longos passeios fora do recinto de acolhimento, momentos diários de sociabilização com animais e pessoas. É preciso custear as despesas médico-veterinárias e não incorrer em dívidas incomportáveis que coloquem em causa a idoneidade das instituições e o bem-estar de todos os animais acolhidos.

Quinto (e último) pensamento: é preciso repensar os modelos de canis e gatis de forma a propiciar uma fuga rápida em caso de calamidade. Corredores comuns com porta de acesso a todas as boxes podem ajudar a salvar muitos animais. A longo prazo, pensar em modelos mais próximos de santuários (espaços mais pequenos, mas em maior quantidade e mais espalhados pelo território), onde se evite a sua concentração e onde os animais possam verdadeiramente expressar uma das cinco liberdades que lhes são universalmente reconhecidas: a de poder manifestar o seu comportamento natural.​

Nada disto é fácil (ou difícil). Uma mudança será tão fácil ou tão difícil quanta a vontade que tivermos de implementá-la. Uma coisa é certa: uma boa gestão faz milagres. E um bom coração também.

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