Burocracia a mais e humanidade a menos: a tragédia dos abrigos de Agrela, em Santo Tirso

Foi tudo desnecessariamente complicado, ninguém sabe dizer quem tinha responsabilidade efectiva de dar ordens em tempo útil para resgatar os animais, e todo o procedimento esteve embrulhado em burocracia a mais e humanidade a menos. É quase uma versão zoófila do Processo de Kafka.

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PAULO PIMENTA

A onda de indignação percorre todo o país e a sociedade clama justiça face ao sofrimento animal desnecessário e facilmente evitável dos animais que pereceram nos abrigos de Agrela, mas parece que, no concelho de Santo Tirso, e não só, algumas autoridades públicas ainda têm um calendário da década de 90 afixado na parede, e não acompanharam a mudança de mentalidades na sociedade dos últimos anos — nem sequer a própria legislação em vigor.

Independentemente de existirem ainda factos por apurar, uma coisa parece ser evidente, por esta altura, aos olhos de quase todos: houve claras falhas na intervenção dos organismos públicos e viram-se populares a fazerem o trabalho que cabia às autoridades, enquanto as mesmas estorvavam essa intervenção, ainda por cima.

Quer a Câmara Municipal de Santo Tirso como o comando da Guarda Nacional Republicana (GNR) apresentaram as suas versões maquilhadas do que se passou nos terrenos, e que frequentemente colidem com os inúmeros testemunhos de quem lá esteve presente e relatou os incidentes, incluindo figuras como a deputada parlamentar Bebiana Cunha. Ou estamos perante uma tentativa de encobrimento institucional ou casualmente dezenas de pessoas apresentaram uma mesma versão contraditória dos acontecimentos.

Assim que deixou de ser possível mascarar a negligência de auxílio a estes animais, e que o país despertou indignado perante as imagens de animais chamuscados, começou o jogo de apontar-se o dedo.

A Câmara Municipal de Santo Tirso rapidamente lavou as mãos na bacia e alegou que a responsabilidade de decidir sobre o resgate de animais era do Comandante de Operações de Socorro da Protecção Civil. No entanto, e apesar de os bombeiros declararem o incêndio como controlado logo na madrugada do dia 19, foi preciso esperar inúmeras horas até que os serviços municipais se decidissem mobilizar para acudir os animais no interior do terreno, quando os populares já tinham inclusive rompido as barreiras policiais.

Já o médico veterinário municipal considerou que os bichos estavam todos de óptima saúde, declaração que a GNR usou para justificar a sua inoperância, isto apesar de nem lá ter colocado os pés nessa noite, conforme corroboraram alguns populares presentes. É um caso de omnisciência prodigiosa. Ainda terá dormido tranquilamente enquanto mais animais morriam, antes de se deslocar ao terreno ao final da manhã do dia seguinte, onde já estavam civis prontificados a intervir há largas horas.

O caso de inacção da Guarda Nacional Republicana de Santo Tirso, presente no local desde o início, é ainda mais assombroso. Parece que o comandante e militares da GNR no terreno tiveram um episódio de amnésia momentânea e se esqueceram de que têm o dever legal de intervir diante de um crime público a ser cometido em acto flagrante — o de maus tratos a animais por omissão de auxílio, tipificado na lei desde 2014. Pois se as proprietárias dos terrenos se recusaram a prestar auxílio aos animais em necessidade após o incêndio estar controlado, é disso que se trata, um crime.

Todo este caso parece um casamento infeliz entre a incompetência de inúmeras entidades. A autarquia aponta agora o dedo ao veterinário municipal pelas falhas na intervenção, pois é mais fácil do que assumir responsabilidades. Mas a GNR mantém a narrativa de que estava tudo a ser tratado pelas autoridades competentes da autarquia, que se limitaram a impedir o acesso à propriedade privada, ainda que perante a aflição dos animais no local.

Foi tudo desnecessariamente complicado, ninguém sabe dizer quem tinha responsabilidade efectiva de dar ordens em tempo útil para resgatar os animais, e todo o procedimento esteve embrulhado em burocracia a mais e humanidade a menos. É quase uma versão zoófila do Processo de Kafka.

Infelizmente, a tragédia estava anunciada. Vários factores faziam prever o acontecimento. As proprietárias dos espaços, sem qualquer licença municipal, já tinham sido alvo em 2017 de um processo-crime de maus tratos a animais. O que foi feito? O Ministério Público arquivou o processo, pois considerou “não haver crueldade em manter animais num espaço sujo, com lixo, dejectos e mau cheiro”. Um entendimento algo aberrante do que são maus tratos, certamente, a não ser que considerem que manter bichos presos numa esterqueira seja uma forma digna e salutar de manter os animais.

A autarquia também continuou a fechar os olhos, talvez porque lhe era conveniente que alguém continuasse a fazer o seu trabalho de retirar os animais das ruas, proverbialmente varrendo o problema dos animais errantes para baixo do tapete. Os canis ilegais continuam, assim, a ser um problema endémico no nosso país.

Mais, claramente ainda não há qualquer estratégia eficaz de resgate de animais em casos de catástrofe, e isso já tinha ficado patente durante a tragédia dos incêndios de Pedrógão, em 2017, que ceifaram a vida a milhares de animais, e onde não se viu qualquer preparação da Protecção Civil para mobilizar uma equipa de profissionais para dar assistência no local e mitigar o sofrimento dos animais sobreviventes. Nessa altura ficou tudo nas mãos de populares ou equipas de voluntários. E foi necessário acontecer um novo episódio desolador como este, mas com as câmaras apontadas aos animais, para vir à tona a incapacidade das autoridades nesta matéria.

Parece que, em Portugal, os órgãos de poder e autoridades públicas regem-se por uma espécie de plano de adaptação improvisada à Lei de Murphy, o célebre adágio que diz que “se algo de errado pode acontecer, vai acontecer”; embora a sua responsabilidade, elegida pelos cidadãos, seja intervir para prevenir que “o errado” possa acontecer, através de legislação e mecanismos fiscalizadores, o oposto sucede frequentemente, e somos o país em que só se criam leis sobre a fiscalização das pontes depois delas caírem, por assim dizer.

Num dos vídeos capturados pelas testemunhas no local ouvem-se as autoridades dizer que “quem manda aqui são os de azul”, em referência às forças de segurança no local. Mas estão enganados, a sociedade é que determina as mudanças, e o povo unido é mais forte, conforme ficou mais uma vez demonstrado. Agora falta os órgãos de poder político acompanharem.

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